Jean-Claude (nome fictício, a pedido do entrevistado) é gestor de projectos e designer para uma marca internacional de automóveis. Cabe-lhe não só imaginar os modelos de amanhã, mas também apresentar as soluções inovadoras, tecnicamente viáveis e economicamente rentáveis para responder às exigências dos automobilistas, sem trair o espírito de marca do construtor para o qual trabalha. O CONTACTO esteve à conversa com este responsável, com quem falou sobre os desafios que se colocam quanto ao futuro do automóvel.
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Ilustração: Alexander Torres |
CONTACTO: Quais são, para si, as grandes tendências
design para o automóvel, digamos,
dentro de dez anos?
Jean-Claude: O futuro
do automóvel em termos de
design
passa por carros mais planos, mais baixos e com pneus mais estreitos.
Será o grande regresso do aerodinamismo, com uma cada vez maior
diminuição da superfície frontal do veículo, para todos os tipos de
carroçarias, incluindo os
breaks , monovolumes e veículos de
tipo SUV (veículo utilitário desportivo: Sport Utility Vehicle).
Depois de duas décadas de carroçarias monovolumes – com capôs e
pára-brisas alinhados – vamos regressar aos capôs mais longos, com
pára-brisas mais verticais.
Os faróis ficarão mais pequenos e
estarão encastrados como pequenos diamantes que brilham. As entradas de
ar, nomeadamente na grelha, vão poder ser ocultadas com pequenos painéis
eléctricos, em função da necessidade de arrefecimento do motor e de
modo a reduzir a força de arrasto do veículo e a torná-lo mais
aerodinâmico. Pequenos apêndices aerodinâmicos vão poder ser accionados
em função da velocidade pretendida, por forma a melhorar ainda mais o
coeficiente de penetração do ar.
Outras das grandes mudanças é
que os automóveis vão passar a ser cada vez mais ligeiros, muito mais
ligeiros.
CONT.: E em 2040, já é possível imaginar?
J.-C.: O carro de 2040 terá todos os fundamentais do carro de
2020, que são idênticos aos do ano 2000, de 1980 e dos anos 1950: quatro
rodas bem redondas, um habitáculo, pelo menos um motor, portas, vidros,
assentos e uma bagageira.
Em 2040, o que um automóvel vai integrar além disso é um máximo de
dispositivos de ajuda à condução e ao lazer. O habitáculo poderá vir até
a dispor de um sistema de luminoterapia, tornar-se um lugar lúdico e
com mais conforto, solicitando os cinco sentidos do condutor e dos
passageiros.
Ao lado de tudo isso, deverá ser ainda mais
aperfeiçoado e consumir menos energia.
CIDADÃOS DO FUTURO VÃO PREFERIR
O SERVIÇO À POSSE
CONT: Há um futuro para
o automóvel ou dirigimo-nos para um
horizonte além de 2050, em que as cidades vão estar destinadas apenas
aos peões e aos transportes públicos? A indústria automóvel
sabe como reagir para fazer durar o transporte privado?
J.-C.: Sabe, e é por isso que a indústria automóvel
vai tranquilamente transformar-se e passar a oferecer "mobilidade
individual": em vez de vender simplesmente "objectos" – carros, motos,
carrinhas, etc. –, vai começar a propor cada vez mais serviços de
mobilidade. O sector vai passar a oferecer aos clientes o transporte
mais adequado à sua necessidade pontual. Graças à conectividade
(internet, GPS, telefonia móvel, etc.) isso vai fazer-se com uma
facilidade desconcertante. Vamos evoluir para uma geração de indivíduos
que vão preferir a utilização e o serviço da mobilidade à posse de um
veículo...
CONT.: Isso é algo impensável hoje em dia, em
que todas as pessoas querem ter o seu automóvel…
J.-C.: Talvez seja impensável hoje, mas é a evolução
lógica, o que não significa o desaparecimento do automóvel.
Os transportes públicos e privados vão continuar a ser complementares,
pois não respondem à mesma necessidade. O urbanismo é limitado e estar
sempre a renovar as infra-estruturas torna-se dispendioso. Os
transportes públicos não podem transportar todos os utentes ao mesmo
tempo, nem a rede viária pode receber todos os automobilistas
simultaneamente.
CONT.: Mas haverá um futuro para o automóvel nos centros urbanos?
J.-C.: Eu acredito que sim, porque o automóvel é e continuará a ser um dos
pulmões económicos das cidades.
Mas se os carros desaparecerem
dos centros urbanos, é preciso reinventar a actividade económica: o
trabalho, os comércios e até a habitação. Agora o que é necessário é que
o automóvel polua cada vez menos.
Um dos outros desafios que se coloca aos construtores é proporem
soluções para reduzir a ligação do carro ao solo…
CONT.:
Isso quer dizer exactamente o quê?...
J.-C.: Quer dizer
que teremos que optar por reduzir o lugar que o carro ocupa na cidade,
tanto no tempo como no espaço.
Temos que reduzir o "tempo" do automóvel quando se desloca na cidade, através
de mais
car-sharing (partilha de carro), o que conduzirá a
menos veículos individuais nos centros urbanos.
E quando o
carro está parado tem que ocupar menos espaço. Podemos conseguir isto
através de automóveis mais pequenos ou "micro-carros", o que permitirá
utilizar estacionamentos mais pequenos dentro das cidades ou criar mais
lugares de estacionamento.
CARROS A ENERGIA FÓSSIL
AINDA DURANTE BASTANTE TEMPO
CONT.: Depois dos
carros híbridos desaparecerem, digamos entro de 20 ou 30 anos, qual será o
combustível ao qual o automóvel vai
recorrer? Gás, energia solar, motores a água? É possível imaginar um
transporte privado que funcione sem um combustível fóssil?
J.-C.: O medo de todos os actores da indústria automóvel é a penúria de petróleo anunciada há
muito. Terá lugar? Ninguém sabe dizer.
Em contrapartida, o
petróleo é um carburante que se tornará cada vez mais caro, o que
permitirá à indústria petrolífera fazer furos mais dispendiosos para ir
procurar o petróleo a profundidades maiores, o que vai retardar durante
mais alguns anos a penúria.
De um ponto de visto técnico, o
petróleo é um produto notável, apesar de ter "má fama". Não existe
actualmente um equivalente ao petróleo, que ofereça uma tal quantidade
de energia num volume e massa tão pequenos, sendo ao mesmo tempo de
fácil acesso em todo o planeta, por um preço tão baixo, mesmo quando
estamos a falar de 1,50 euros por litro.
CONT.: Mas e
quando deixar efectivamente de haver petróleo?
J.-C.: A
Idade da Pedra não acabou pela falta de pedras (risos). Para a "Idade do
Petróleo" vai ser a mesma coisa.
Outras energias, certamente
sintéticas, vão aparecer e substituir o petróleo, como o bronze
substituiu a pedra. Mesmo que essas novas energias sejam caras, poderão
tornar-se economicamente interessantes um dia, face ao petróleo que se
terá tornado fora de preço.
A minha convicção é que os carros
vão continuar a utilizar, ainda durante bastante tempo, energia fóssil.
Mas deverão passar a consumir drasticamente menos do que hoje. Os carros
vão ter que apetrechar-se dos mais diversos dispositivos para utilizar
ao máximo cada gota do depósito: recuperação da energia dos travões,
climatização activada com os travões, motor eléctrico para temporizar
aceleramentos e abrandamentos, super-isolamento do habitáculo para
reduzir as perdas de energia e as necessidades em aquecimento e ar
condicionado, infra-estruturas inteligentes para tornar o tráfego mais
fluído, etc.
CONT.: E os carros híbridos e eléctricos?
J.-C.: O automóvel híbrido
também vai ainda durar bastante tempo, além desse horizonte de 2040,
porque ao recorrer a duas fontes de energia, maximiza o consumo.
Quanto ao carro eléctrico é, a meu ver, um beco sem saída, pelo menos,
de momento. É uma tecnologia em perpétua evolução, mas que não consegue
traduzir-se numa utilização significativa por parte dos clientes, ainda
hoje não chega aos 20 % das partes de mercado.
Apesar disso, o
carro eléctrico conseguiu um bom lugar em algumas actividades como a
indústria, a marinha, os campos de golfe. É preciso, no entanto,
continuar a trabalhar este dossier. Talvez um dia encontremos uma
solução elegante para o problema das baterias dos carros eléctricos,
tanto do ponto de vista do custo, como da longevidade e da autonomia.
Não é preciso esperar 50 anos, a redução do consumo de energia num automóvel já será espectacular se
conseguirmos baixar 20 % nos próximos anos. Podemos até começar já, mas
para isso é necessário alterar a nossa forma de conduzir, a nossa
relação com o tempo, a potência e a velocidade de um veículo.
"O AUTOMÓVEL É UM BEM
QUE CHEGOU A MATURAçÃO"
CONT.: Quais as
prioridades que um designer deve ter em conta actualmente para
imaginar o automóvel do futuro: aerodinamismo, consumo, segurança?
J.-C.: O automóvel é certamente um
dos produtos mais complexos de conceber. Este tem que arrancar qualquer
que seja a meteorologia, faça -50°C ou +50°C, tem que aquecer o condutor
e os passageiros quando está frio lá fora, transportá-los em toda a
segurança, no maior conforto possível e com o menor ruído possível,
entre muitas outras exigências. Tudo isto respeitando normas
draconianas, durar 20 anos e conseguir chegar, pelo menos, aos 300 mil
quilómetros. E tem que poder ser conduzido por qualquer pessoa.
O automóvel é o único bem no mundo que tem
o dever de convencer todos os clientes, homens ou mulheres, dos 7 aos
77 anos, em todos os países e culturas.
Assim sendo, tudo é
prioritário e para quem desenha e concebe um automóvel
– do designer ao construtor – o objectivo é alcançar o melhor
compromisso num veículo o mais homogéneo possível.
O carro é
um bem que chegou a maturação e que não vai conhecer grandes alterações
no futuro, como o que podemos ver, por
exemplo, com os telemóveis nos últimos anos.
CONT.: Já
chegou a desenhar e a conceber modelos que sabe de antemão que não
poderão ser comercializados ou que não passarão do estirador?
J.-C.: Esse exercício é frequente e salutar, e é o que dá origem
aos concept-cars . Os concept-cars são conceitos
imaginados em toda a sua “pureza”, com o mínimo de constrangimentos.
Tanto, que em alguns concept-cars , um condutor tem
dificuldades para se sentar, de tão baixos que são. É quase uma
escultura, mais do que um automóvel.
Mas os “concept-cars” são importantes para estimular a criatividade dos
designers , nos deixar ultrapassar os nossos limites, os
limites técnicos e os constrangimentos, e vão permitir-nos fazer
progressos em alguns domínios em que não avançávamos.
CONT.: Justamente, quais são os limites que lhe são impostos quando
concebe um novo modelo?
J.-C.: A primeira e maior
limitação é económica. É necessário fazer modelos rentáveis.
O
mercado é tão concorrencial que qualquer grande construtor arrisca-se a
falir se um ou dois modelos seguidos não registarem lucro. Essa margem é
algo que se perde ou ganha, às vezes devido a pequenas coisas.
CONT.: Um dos futuros possíveis para o automóvel é o “carro por encomenda”...
J.-C.: Bem, o carro por
encomenda já existe, pois o cliente pode escolher o seu modelo numa gama
que oferece mais de vinte veículos por construtor. Depois pode
personalizá-lo com opções, cores, equipamentos, acessórios e mesmo
interiores. Estamos bem longe do Ford T, em que o cliente podia escolher
apenas a cor… desde que fosse preta (risos).
CONT.: Mas é
economicamente viável responder pontualmente aos desejos do cliente?
J-C.: É não só viável economicamente, como é mesmo
indispensável comercialmente. E muitos outros equipamentos e opções vão
continuar a aparecer para que o cliente possa diferenciar o seu automóvel do do vizinho.
CONT.:
Quais são as exigências actuais dos compradores e como é que isso
influencia o seu trabalho e a decisão de fabricar este modelo em vez
daquele?
J.-P.: A indústria automóvel
é uma grande consumidora de inquéritos de opinião, testes de clientela e
recorre frequentemente aos serviços do que chamamos “consultores
futurólogos”. O direito ao erro não existe e o construtor tem que
constantemente projectar-se no futuro e
estudar um automóvel durante cinco anos,
antes que este chegue ao mercado.
Depois de um modelo já estar
no mercado, o carro tem que continuar a vender durante pelo menos mais
uma década, antes de chegar ao mercado dos carros de segunda mão, onde
vai ficar mais dez anos.
O timing para desenhar,
conceber e comercializar um automóvel é
fundamental, não pode ser muito cedo, nem muito tarde. A margem de
manobra é estreita.
CONT.: Quer dizer que hoje já estão a
pensar nas exigências que os clientes terão dentro de 10 anos?
J.-C. : Claro, mas além das inovações técnicas e tecnológicas,
essas exigências são sempre as mesmas. Basicamente todos os compradores
de um novo automóvel querem o mesmo que eu e
você, querem tudo em melhor: o melhor carro, o mais confortável, aquele
que tem mais equipamentos pelo menor preço e o consumo mais baixo, ver
nulo, se possível.
CONT.: Mas actualmente, há alguma
tendência mais em voga?
J.-C.: Actualmente, as exigências
vão no sentido de uma maior conectividade no automóvel.
CONT.: Por falar nisso, ouvir rádio pela internet quando estamos a conduzir, ter um sonar que se projecta no
pára-brisas para auxiliar a condução, um carro que estaciona sozinho,
auto-estradas equipadas com sistemas que permitem ao condutor colocar o
carro em auto-piloto, sky-cars ... Tudo isto ainda é
ficção-científica ou uma realidade que podemos esperar para breve?
J.-C.: Todos esses equipamentos já são existem e são até propostos
em alguns modelos.
O sky-car já é comercializado nos
Estados Unidos, basta ter a carta de piloto para pequenos aviões.
Quanto ao auto-piloto num automóvel e às
auto-estradas inteligentes, a tecnologia está pronta, só falta mesmo é
convencer o condutor, o que pode vir a acontecer nos anos 2030, quando a
geração internet chegar ao poder.
Entrevista conduzida por José Luís Correia
in CONTACTO de 01/02/2012