Não se sabe se existe, mas o estereótipo do "turista social” que vem
para o Luxemburgo para usufruir da Segurança Social está bem vivo na
cabeça das autoridades luxemburguesas.
"Há pessoas que se apresentam no Fonds National de Solidarité [que atribui o Rendimento Mínimo Garantido] sem sequer se inscreverem antes na comuna. Eu não vi, mas contaram-me no FNS", diz Tom Goeders, responsável pelo Serviço dos Cidadãos Comunitários na Direcção da Imigração. E no entanto, os casos em que aquele serviço ameaça retirar o direito de residência aos beneficiários de RMG estão longe de encaixar nesse estereótipo.
Na secretária do chefe de serviço, acumulam-se duas pilhas de processos. No chão, há mais dois caixotes com pastas. É daqui que saem os avisos para os beneficiários do RMG, "em média dez por semana". Destes, mais de 60 por cento são enviados a portugueses, garante Tom Goeders – seis por semana, pelo menos um por dia.
O volume aumentou muito desde meados de 2011. Nos últimos 15 meses, o FNS recebeu 1.800 novos pedidos de RMG de cidadãos comunitários e de países fora da UE, revelou ao CONTACTO Claude Schranck, responsável da administração do Fonds National de Solidarité. Nos últimos meses, são 200 novos pedidos de RMG por mês, diz Schranck, que reconhece que a instituição não dispõe de estatísticas fiáveis nem de dados comparativos com anos anteriores.
"Há uns meses, mudámos a nossa posição", admite Tom Goeders. "Antes, se uma pessoa trabalhava quarenta horas por semana e recebia um complemento de RMG, dizíamos: 'já trabalha o máximo possível'. Mas como o número de pessoas que pede o RMG aumentou, e as pessoas vão começar a imigrar para o Luxemburgo por esta razão, tornámo-nos rigorosos".
A máquina de fiscalização está montada. Sempre que entra um pedido de RMG de um cidadão comunitário, o Fonds National de Solidarité (FNS) informa a Direcção da Imigração, "mesmo que as pessoas só recebam um complemento de RMG de 300 ou 400 euros”, explica Goeders. Depois, a Direcção da Imigração verifica há quanto tempo a pessoa chegou ao Luxemburgo, quantos meses trabalhou no país, quanto recebe de RMG.
"Numa primeira fase, os interessados são informados da nossa intenção de revogar o direito de residência. Depois, analisamos a reacção. Se a pessoa nem sequer responde, a seguir enviamos a carta em que revogamos o direito de residência”.
Desde o início deste ano, a Direcção da Imigração já retirou o direito de residência em 70 casos. A fundamentar as decisões do Ministério estão os artigos 6 e 24 da Lei de 29 de Agosto de 2008 sobre a livre circulação e a imigração, que transpõe a directiva comunitária 2004/38/CE. Uma e outra condicionam o direito de residência dos cidadãos comunitários à prova de "recursos suficientes para não se tornar[em] uma sobrecarga não razoável para o regime de Segurança Social”.
O problema é que em lado nenhum se define o que é "uma sobrecarga não razoável”, e a amostra de casos é tão variada que é difícil descortinar o princípio que dita as decisões. Em comum, apenas o facto de em todos os casos os cidadãos comunitários estarem há menos de cinco anos no Luxemburgo, e não terem por isso direito de residência permanente.
No mais, "os casos raramente se parecem”, admite Goeders. A maioria são pessoas que estão há pouco tempo no Luxemburgo e que começaram a receber o RMG pouco tempo depois.
"Se uma pessoa vem, trabalha três meses, e depois recebe RMG durante cinco meses, e não responde de forma convincente à primeira carta, aí dizemos-lhe 'ok, talvez seja melhor que vá para outro país'”. Um grande número de casos diz respeito a "pessoas que, depois de viverem nove meses no Luxemburgo, recebem a totalidade do RMG (cerca de 1.400 euros) durante seis meses, por exemplo”.
O maior número de casos nesta situação são pessoas que trabalham na construção, no sector de trabalho temporário. "A construção está em crise, e pelo menos no Inverno, é difícil encontrar trabalho”, explica o funcionário.
Como há também, de há uns meses para cá, trabalhadores a receberem avisos da Direcção da Imigração, como no caso de João e Maria, que publicamos nestas páginas. "Pessoas pouco qualificadas, que por isso recebem salários mais baixos” e têm de receber um complemento de RMG para a família.
No Luxemburgo, um em cada dez trabalhadores está em situação de pobreza, segundo um relatório do Statec de 2012. O país pode ter o salário mínimo mais alto da União Europeia, mas "é também o país da Europa onde o salário mínimo mais se aproxima do limiar de pobreza", constata o gabinete de estatísticas luxemburguês. Resultado: há famílias em que um ou mais elementos trabalham, e mesmo assim têm direito a receber um complemento de RMG para poderem sobreviver.
"Se numa família alguém trabalha quarenta horas por semana, ou arquivamos o processo, ou damos-lhe mais tempo [para resolver a situação]. Mas num caso em que o marido trabalha 40 horas e a mulher 20, por exemplo, aí não há problema, porque não estamos perante uma sobrecarga não razoável. Aí, é a vida que é demasiado cara no Luxemburgo”, diz Tom Goeders.
Há também casos de beneficiários do RMG que em troca do subsídio trabalham para o Estado, ao abrigo de uma medida de inserção profissional. O problema é que depois arriscam-se a receber uma carta da Direcção da Imigração a ameaçar revogar-lhes o direito de residência. A razão? "Estas medidas de inserção são totalmente financiadas pelo Estado, e por isso não são consideradas trabalho”, justifica-se Goeders.
O chefe do Serviço dos Cidadãos Comunitários deixa um alerta: "As pessoas não estão informadas. Nos primeiros cinco anos de residência, quem recorra frequentemente às chamadas prestações sociais não contributivas (o RMG) arrisca-se a ver retirado o direito de residência – as pessoas que recebem subsídio de desemprego não estão em causa, descontaram para isso. O que as pessoas têm de perceber é que o RMG serve para 'desenrascar', não deve ser um recurso que perdure, porque senão arriscam-se a ter problemas”.
A partir de cinco anos no país, os cidadãos comunitários adquirem o direito de residência permanente e deixam de estar sujeitos à fiscalização do Estado. "Aí, têm os mesmos direitos que um cidadão luxemburguês – deixam de ter de provar que têm recursos suficientes".
Na carta que enviou na sexta-feira ao ministro da Imigração, e a que o CONTACTO teve acesso, a ASTI questiona os critérios da Direcção da Imigração, "tendo em conta as consequências dramáticas da revogação do certificado de residência”. E insta o ministro a rever os procedimentos, "sobretudo se os elementos do processo indicam que foi uma causa independente da vontade [dos beneficiários do RMG] a colocá-los em situação de dependência social".
Paula Telo Alves
"Há pessoas que se apresentam no Fonds National de Solidarité [que atribui o Rendimento Mínimo Garantido] sem sequer se inscreverem antes na comuna. Eu não vi, mas contaram-me no FNS", diz Tom Goeders, responsável pelo Serviço dos Cidadãos Comunitários na Direcção da Imigração. E no entanto, os casos em que aquele serviço ameaça retirar o direito de residência aos beneficiários de RMG estão longe de encaixar nesse estereótipo.
Na secretária do chefe de serviço, acumulam-se duas pilhas de processos. No chão, há mais dois caixotes com pastas. É daqui que saem os avisos para os beneficiários do RMG, "em média dez por semana". Destes, mais de 60 por cento são enviados a portugueses, garante Tom Goeders – seis por semana, pelo menos um por dia.
O volume aumentou muito desde meados de 2011. Nos últimos 15 meses, o FNS recebeu 1.800 novos pedidos de RMG de cidadãos comunitários e de países fora da UE, revelou ao CONTACTO Claude Schranck, responsável da administração do Fonds National de Solidarité. Nos últimos meses, são 200 novos pedidos de RMG por mês, diz Schranck, que reconhece que a instituição não dispõe de estatísticas fiáveis nem de dados comparativos com anos anteriores.
"Há uns meses, mudámos a nossa posição", admite Tom Goeders. "Antes, se uma pessoa trabalhava quarenta horas por semana e recebia um complemento de RMG, dizíamos: 'já trabalha o máximo possível'. Mas como o número de pessoas que pede o RMG aumentou, e as pessoas vão começar a imigrar para o Luxemburgo por esta razão, tornámo-nos rigorosos".
A máquina de fiscalização está montada. Sempre que entra um pedido de RMG de um cidadão comunitário, o Fonds National de Solidarité (FNS) informa a Direcção da Imigração, "mesmo que as pessoas só recebam um complemento de RMG de 300 ou 400 euros”, explica Goeders. Depois, a Direcção da Imigração verifica há quanto tempo a pessoa chegou ao Luxemburgo, quantos meses trabalhou no país, quanto recebe de RMG.
"Numa primeira fase, os interessados são informados da nossa intenção de revogar o direito de residência. Depois, analisamos a reacção. Se a pessoa nem sequer responde, a seguir enviamos a carta em que revogamos o direito de residência”.
Desde o início deste ano, a Direcção da Imigração já retirou o direito de residência em 70 casos. A fundamentar as decisões do Ministério estão os artigos 6 e 24 da Lei de 29 de Agosto de 2008 sobre a livre circulação e a imigração, que transpõe a directiva comunitária 2004/38/CE. Uma e outra condicionam o direito de residência dos cidadãos comunitários à prova de "recursos suficientes para não se tornar[em] uma sobrecarga não razoável para o regime de Segurança Social”.
O problema é que em lado nenhum se define o que é "uma sobrecarga não razoável”, e a amostra de casos é tão variada que é difícil descortinar o princípio que dita as decisões. Em comum, apenas o facto de em todos os casos os cidadãos comunitários estarem há menos de cinco anos no Luxemburgo, e não terem por isso direito de residência permanente.
No mais, "os casos raramente se parecem”, admite Goeders. A maioria são pessoas que estão há pouco tempo no Luxemburgo e que começaram a receber o RMG pouco tempo depois.
"Se uma pessoa vem, trabalha três meses, e depois recebe RMG durante cinco meses, e não responde de forma convincente à primeira carta, aí dizemos-lhe 'ok, talvez seja melhor que vá para outro país'”. Um grande número de casos diz respeito a "pessoas que, depois de viverem nove meses no Luxemburgo, recebem a totalidade do RMG (cerca de 1.400 euros) durante seis meses, por exemplo”.
O maior número de casos nesta situação são pessoas que trabalham na construção, no sector de trabalho temporário. "A construção está em crise, e pelo menos no Inverno, é difícil encontrar trabalho”, explica o funcionário.
Como há também, de há uns meses para cá, trabalhadores a receberem avisos da Direcção da Imigração, como no caso de João e Maria, que publicamos nestas páginas. "Pessoas pouco qualificadas, que por isso recebem salários mais baixos” e têm de receber um complemento de RMG para a família.
No Luxemburgo, um em cada dez trabalhadores está em situação de pobreza, segundo um relatório do Statec de 2012. O país pode ter o salário mínimo mais alto da União Europeia, mas "é também o país da Europa onde o salário mínimo mais se aproxima do limiar de pobreza", constata o gabinete de estatísticas luxemburguês. Resultado: há famílias em que um ou mais elementos trabalham, e mesmo assim têm direito a receber um complemento de RMG para poderem sobreviver.
"Se numa família alguém trabalha quarenta horas por semana, ou arquivamos o processo, ou damos-lhe mais tempo [para resolver a situação]. Mas num caso em que o marido trabalha 40 horas e a mulher 20, por exemplo, aí não há problema, porque não estamos perante uma sobrecarga não razoável. Aí, é a vida que é demasiado cara no Luxemburgo”, diz Tom Goeders.
Há também casos de beneficiários do RMG que em troca do subsídio trabalham para o Estado, ao abrigo de uma medida de inserção profissional. O problema é que depois arriscam-se a receber uma carta da Direcção da Imigração a ameaçar revogar-lhes o direito de residência. A razão? "Estas medidas de inserção são totalmente financiadas pelo Estado, e por isso não são consideradas trabalho”, justifica-se Goeders.
O chefe do Serviço dos Cidadãos Comunitários deixa um alerta: "As pessoas não estão informadas. Nos primeiros cinco anos de residência, quem recorra frequentemente às chamadas prestações sociais não contributivas (o RMG) arrisca-se a ver retirado o direito de residência – as pessoas que recebem subsídio de desemprego não estão em causa, descontaram para isso. O que as pessoas têm de perceber é que o RMG serve para 'desenrascar', não deve ser um recurso que perdure, porque senão arriscam-se a ter problemas”.
A partir de cinco anos no país, os cidadãos comunitários adquirem o direito de residência permanente e deixam de estar sujeitos à fiscalização do Estado. "Aí, têm os mesmos direitos que um cidadão luxemburguês – deixam de ter de provar que têm recursos suficientes".
Na carta que enviou na sexta-feira ao ministro da Imigração, e a que o CONTACTO teve acesso, a ASTI questiona os critérios da Direcção da Imigração, "tendo em conta as consequências dramáticas da revogação do certificado de residência”. E insta o ministro a rever os procedimentos, "sobretudo se os elementos do processo indicam que foi uma causa independente da vontade [dos beneficiários do RMG] a colocá-los em situação de dependência social".
Paula Telo Alves
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