Editoriais

Terramoto e crise

As notícias do terramoto de Lisboa, em 1755, levaram cerca de duas semanas para chegar a Londres. As descrições que correram eram de tal maneira horrorosas que algumas pessoas se mostravam incrédulas. Entre elas, Samuel Johnson, para quem um cataclismo de tais dimensões seria impossível.
T.D. Kendrick, no seu notável relato "The Lisbon Earthquake", enaltece a extraordinária reacção de "charity" (caridade) que se formou na Europa, sobretudo na Espanha, França, Alemanha e Inglaterra. Descobriu-se, através das fronteiras, um grande sentido de vizinhança e vontade de ajudar. Mas certamente em parte nenhuma a consternação foi tão visível como na Inglaterra. Donde vieram auxílios abundantes e programados. "Altercações a propósito de velhos tratados e diferenças religiosas não fizeram diminuir o profundo afecto que os britânicos dedicam a Lisboa e aos portugueses". A Inglaterra "não tem laços tão estreitos com nenhum outro país independente" (The Lisbon Earthquake, p.146).
A memória guiou-me na busca desta peça literária, ao ler, num jornal de Lisboa, uma notícia sobre parcerias luso-britânicas. Hoje mesmo, dia 8, em Lisboa, a embaixada do Reino Unido e a UK Trade & Investment de Portugal apresentam as quinze empresas da Grã-Bretanha que se propõem fundar parcerias com o seu mais antigo aliado para entrarem nos mercados de Angola, Moçambique e Brasil. E para facilitar aos portugueses a entrada no Médio Oriente e na Ásia.
Boas notícias, como no tempo do terramoto. Bem pensado, a tragédia que o país sofre não é menor que a de 1755. Só que, desta vez, a causa não é sísmica, é pior, é política.
A alternância partidária, desde 1974, tem jogado ao quanto pior melhor. Os partidos arranjaram-se para se governarem à vez. A "austeria", que vai depenando toda a gente, tem poupado, cirurgicamente, os privilégios de deputados, governantes, autarcas, PR, ex-PRs (menos o general Eanes!). Até têm o despudor de atirar com a crise e a Troika, que eles parturejaram, para cima do povo. E o povo que aguente, concordam os seus próceres banqueiros.
Mas a verdade começa a aparecer. O vice-presidente da Associação de Integridade e Transparência, Paulo Morais, acaba de garantir que a crise não vem do povo, mas se deve à corrupção de políticos e cúmplices especuladores. "Há duas mentiras que têm sido repetidas na sociedade portuguesa: que os portugueses andaram a gastar acima das suas posses e que não há alternativa à austeridade para expiarem os pecados (que não cometeram)". O bispo dos militares já o dissera mais claro, chamando à AR o couto (outra grafia é 'coito') da corrupção.
O que primeiro se impõe a Portugal é mudar de políticos. Acabar com o vira-vira socretino e coelhino. Os brasileiros vêm no nosso défice de cultura anglo-saxónica a causa do seu atraso político. E acabaram com as bolsas para estudar em universidades lusitanas.
Não é vergonha aprender, mas aprender com quem sabe. E temos três razões para respeitar a aliança: o nosso mais antigo tratado internacional, os melhores estadistas dos últimos cem anos, a oportunidade das novas parcerias. Uma Troika diferente. O livro de Kendrick foi escrito no bicentenário do tsunami de Lisboa. Depois do mapa cor de rosa e do regicídio. Não parece que tenha diminuído, nas ilhas britânicas, a "saudade lusitana".
Várias razões explicam a esterilidade dos partidos lusos. Os estadistas não se formam nas escolas dos "jotas", que produziram as excelsas mediocridades rotativas PS e PSD. Há homens de estado auto-didactas. Mas poucos. A baronesa Thatcher estudou, afincadamente, em Cambridge. Era filha de um merceeiro, mas inteligente e honesto.
Margaret Thatcher foi um fenómeno político que durante 11 anos ocupou o centro do palco planetário. Viveu num permanente clima de drama, "a tigress surrounded by hamsters" (John Biffen, ex-colega). Estancou e inverteu o declínio económico do Reino. É verdade que a sua aposta no indivíduo e na família obliterou o social. Destruiu a tirania semi-marxista dos sindicatos; mas abriu o caminho à tirania neoconservadora do mercado livre. No entanto, o Papa Francisco, num telegrama de pêsames, “recorda com apreço os valores cristãos que sustentaram o seu compromisso de servir e a promoção da liberdade na família das nações". Testemunho insuspeito, argentino!
 

Pe Belmiro Narino, 08/05/2013

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Francisco de Assis e Francisco de Roma

Num primeiro de Maio, é natural que se trate de política. Fá-lo-ia, se a palavra ainda significasse "a arte de bem governar os povos". O que não é o caso de Portugal, como de quase todos os países do terceiro mundo político. Os partidos ocuparam a ágora. Não ser homem de partido é inconcebível para eles, e para os membros que os formam, os homens das massas. São "indivíduos sempre da mesma bitola", dizia Ortega y Gasset já nos anos 30 do século passado. Gente "cansada de si mesma". O grande filósofo ibérico fala de um fastio estrutural que provoca a fuga de si mesmo, com medo de enfrentar a situação trágica do nosso viver em sociedade. Entra-se num partido como num comboio. Verdade, justiça, pátria, o partido dá tudo feitinho, dispensa o drama de investigar. O que é preciso é alimentar o partido. O PS em Santa Maria da Feira é exemplo que basta.
O citado filósofo distingue o homem-massa, o homem vulgar, do homem excelente, sendo aquele o que nada exige de si, e este, o que muito exige de si mesmo. Também diz que a política não é reino de amor, nem de verdade, mas reino do poder.
O homem selecto, excelente, procura humanizar a política, por vezes à custa da própria vida. Como Martinho Lutero King e o bispo Romero. Um desassossego íntimo, metafísico, leva-o a apelar de si mesmo para um norma além, superior. Francisco de Assis e Francisco de Roma, dois epónimos desta galeria de excelência. Contemporâneos, embora 800 anos os separem.
Francisco nasceu numa família abastada
e aristocrática. Foi militar, prisioneiro de guerra, "playboy", mas, quando chegou o tempo de se decidir por uma carreira, talvez no serviço diplomático, sentiu-se chamado para uma tarefa espiritual: restaurar a Igreja. Este chamamento é feito a muitos jovens, mas nem todos o reconhecem como vindo
de Deus. Francisco Bernardone reconheceu-o, e isto fez dele um ser excepcional, excelente. Começou por onde Cristo se lhe tornou mais visível no meio dos homens, os derrelitos. A voz dos pobres e dos leprosos soava-lhe como a voz divina. Foi peregrino a Roma, alugou os trapos de um pedinte, às portas de cidade, e passou o dia no adro de uma igreja a mendigar. Abraçou, beijou e lavou os doentes mais repulsivos do seu tempo, os leprosos. Aprendeu, em primeira mão, a pobreza e o sofrimento. Com o coração inflamado do amor de Cristo crucificado, soltava-se-lhe a língua em cânticos de louvor. Melhor do que cantara na tropa, na prisão e nas festas da juventude. Como um enamorado louco, começaram a chamar-lhe o trovador de Deus.
Nos princípios do séc. XIII, não havia grande diferença entre política e Igreja. O Papa, Inocêncio III, tentava gerir uma e outra em lutas de armas e de ideias. Cruzadas contra os albigenses, os cátaros, os muçulmanos. Prercebeu que a repressão não era o remédio mais indicado. Foi então que lhe apareceu o "poverello" de Assis, cujo movimento carismático já granjeara centenas de irmãos, desde os simples aos mais letrados. Eram necessárias regras, aprovadas pelo Papa. Francisco foi apresentá-las, era o IV Concílio de Latrão. O ar excêntrico e andrajoso do trovador de Deus não agradou ao aristocrata Inocêncio, o qual, segundo relata Mateus Paris, disse a Francisco que fosse brincar com os porcos, onde pertencia. Serviu-lhe de lição, ao Papa, quando no dia seguinte viu que Francisco o seguira à letra. Ficou aprovado o seu movimento de absoluta pobreza, com autorização de pregar, mas sem se imiscuir na teologia... "O que não é formado pela razão não pode ser destruído pela razão". Di-lo-ia mais tarde o Dr. Johnson, e era o que Francisco bem sabia: as "dificuldades" dos homens vêm mais do coração do que da cabeça. Paz e bem.
E também o sabia o Cardeal Bergoglio, ao rebaptizar-se Francisco. Na primeira quinta-feira santa do seu pontificado, o poder pôs-se de joelhos, a servir, numa prisão de Roma, para lavar e beijar os pés de 12 detidos, dos quais dois muçulmanos e duas mulheres. Já o tinha feito quando se chamava Jorge Mario Gergoglio e era arcebispo de Buenos Aires, com doentes de sida, com parturientes e os seus bebés. "Servus servorum Dei", à letra.
É no drama humano da pobreza, da debilidade, do sofrimento que tocamos no mistério da incarnação. É nas franjas da sociedade que Deus espera o nosso amor. Pelos pobres se cura o homem. João Paulo II ajudou a derrubar a cortina de ferro. O Papa Francisco está a derrubar os muros internos que impedem a Igreja de se ver a si mesma, na sua pureza original. Porque não basta uma Igreja ao serviço dos pobres; a Igreja Católica e Apostólica Romana é a Igreja dos pobres.

 Pe Belmiro Narino, 02/05/2013

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Tribunal Europeu dá razão à Ana, à Maria,
ao Manuel, ao António...


É famosa a definição de jornalismo cunhada pelo escritor inglês George Orwell, ele próprio jornalista e combatente na Guerra Civil de Espanha: "Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Tudo o resto é publicidade".
Foi no cumprimento dessa missão nobre do jornalismo – a denúncia da injustiça e dos disfuncionamentos do sistema – que o jornal CONTACTO foi alvo de buscas policiais há quatro anos. A reportagem "Vidas desfeitas à ordem do Tribunal", que relatava o caso de dois menores portugueses retirados às famílias de forma abusiva, não agradou ao assistente social responsável pelos dois casos nem aos serviços sociais no Luxemburgo, que apresentaram queixa por difamação contra o CONTACTO. Foi essa queixa que deu origem às buscas policiais e à apreensão de um bloco de notas do jornalista que assinava a reportagem, além de ficheiros informáticos retirados do computador pela Polícia.
O caso foi unanimemente condenado pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), pela Federação Europeia dos Jornalistas e pelo Conselho de Imprensa no Luxemburgo, por violar a protecção das fontes e a lei luxemburguesa – que proíbe buscas nas redacções ou no domicílio dos jornalistas, excepto em caso de crimes graves contra as pessoas, terrorismo, tráfico de droga, branqueamento de capitais ou ameaça à segurança do Estado. A reportagem não configurava nenhuma das excepções previstas na lei, pelo que as buscas foram ilegais.
Denunciámos de forma veemente essas buscas e a apreensão de material jornalístico, inadmissíveis numa democracia, efectuadas pela Polícia Judiciária nas instalações do CONTACTO na mais pura ilegalidade e com manifesta desproporção de meios, como se estivessem a lidar com criminosos. Mas apesar do clamor internacional das organizações de jornalistas, os tribunais luxemburgueses recusaram dar razão ao CONTACTO, afirmando sempre que as buscas foram legítimas.
Na quinta-feira passada, quase quatro anos depois deste episódio que envergonhou o Luxemburgo e o levou nesse mesmo ano a cair 19 lugares no "ranking" da liberdade de imprensa estabelecido anualmente pelos RSF, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu finalmente razão ao CONTACTO, condenando o Luxemburgo por violar a liberdade de expressão do jornal. É uma vitória para o jornalismo, saudada já pelas associações de jornalistas no Luxemburgo, e uma vitória que partilhamos também com todos os nossos leitores, porque a vitória é, em primeira instância, deles. A liberdade de expressão, de que a liberdade de imprensa é um corolário, é um direito fundamental que garante, de forma instrumental, o direito de ser informado, essencial numa sociedade democrática. São direitos que têm de ser defendidos todos os dias, em tudo o que fazemos, e liberdades que têm de ser conquistadas diariamente – sempre com "a aguerrida teimosia de quebrar dia a dia um grilhão da corrente", como dizia Miguel Torga –, porque a verdade é incómoda e incomoda.
No CONTACTO, sabemos que o cumprimento da missão de informar (a Ana, a Maria, o Manuel, o António, e todos os nossos leitores) tem de ser defendida todos os dias, porque apesar de esta missão ser garantida por lei, há quem continue a conviver mal com o direito de informar e de ser informado.
É o caso do actual cônsul e da embaixadora de Portugal no Luxemburgo. Um jornalista do CONTACTO foi expulso das instalações do Consulado pelo cônsul de Portugal, Rui Monteiro, por ter feito uma pergunta incómoda sobre a avaria informática que deixou o Consulado fechado ao público durante mais de três semanas. Incómodo, também, o artigo que o CONTACTO fez sobre os disfuncionamentos no arranque do sistema de marcações prévias no Consulado: o cônsul de Portugal insurgiu-se contra o artigo – isto apesar de Rui Monteiro não ter contestado o seu conteúdo, usando do direito de resposta que lhe assistia, nem do direito de rectificação, que o jornal lhe propôs. Não havia nada a rectificar, porque tudo se passou como o jornal noticiou; o problema é que a notícia não agradou ao cônsul de Portugal no Luxemburgo.
A moda parece ter pegado. Na quarta-feira passada, durante um evento público no Instituto Camões, a embaixadora de Portugal no Luxemburgo disse que não falava com a jornalista do CONTACTO que fez a notícia sobre o concurso para recrutar um cozinheiro para a residência da embaixadora, um concurso que não respeita a legislação luxemburguesa sobre o salário mínimo no país. Num lugar público, a embaixadora recusou falar com a jornalista, afirmando que não falava "nem agora nem nunca" – não por causa do artigo sobre o concurso aberto pela Embaixada de Portugal, que o jornal denunciou na semana passada, precisou Maria Rita Ferro, mas por causa "do artigo sobre o Consulado", disse a embaixadora – o mesmo artigo que já tinha incomodado o cônsul.
O que estes episódios mostram é que há pessoas que convivem mal com o direito à informação e com a liberdade de imprensa. Direitos garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pela Constituição da República Portuguesa e pela lei da imprensa no Luxemburgo, não para conceder qualquer espécie de privilégio aos jornalistas – sujeitos ao escrutínio da lei, como qualquer cidadão, e também às regras deontológicas definidas pelo Conselho de Imprensa –, mas sim para garantir a todos os cidadãos o direito a serem informados.
 A embaixadora e o cônsul são a cara de Portugal no Luxemburgo. Pelos cargos que ocupam e as responsabilidades que assumiram, os representantes do Estado português no Luxemburgo estão sujeitos ao escrutínio da imprensa, e não podem impedir os jornalistas de fazerem o seu trabalho e de informarem os leitores. Fazê-lo, é negar o direito à informação aos mais de 40 mil leitores que todas as semanas lêem o CONTACTO, o maior e o mais antigo jornal português em circulação no Luxemburgo.
O comportamento dos dois diplomatas contrasta flagrantemente com o dos seus antecessores, que sempre perceberam a importância de informar a comunidade portuguesa e o papel determinante que o CONTACTO tem nessa missão. Mesmo em casos graves que o CONTACTO também denunciou na altura (como a violação dos direitos laborais dos contratados locais no Consulado e na Embaixada), e até embaraçosos (caso dos cortes no aquecimento do Consulado por causa da austeridade), mesmo nesses casos, os dois diplomatas mostraram-se sempre abertos aos jornalistas do CONTACTO e nunca recusaram falar-lhes ou prestar-lhes informações.
O CONTACTO reitera aos seus leitores que vai continuar a informá-los, cumprindo assim a missão para a qual este jornal nasceu, há 43 anos, doa a quem doer.

A Redacção
, 24/04/2013

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A Dama de Ferro"Assim acontece com a ressurreição dos mortos: semeia-se corruptível, ressuscita incorruptível; semeia-se sem honra, ressuscita glorioso; (...) semeia-se um corpo animal, ressuscita um corpo espiritual. Se existe um corpo animal, existe também um corpo espiritual" (I Cor 15, 42-44).
O corpo animal, escreve S. Paulo, é animado por um alento finito, caduco ("psyche"); o corpo espiritual, por um princípio celeste, eterno ("pneuma"). A metáfora da sementeira parece arrumar o cadáver no reino vegetal e mostrar a inanidade das cerimónias fúnebres, "les pompes funèbres", que se foram elaborando para camuflar a insignificância física dos restos mortais, que se semeiam "sem honra". "Much ado about nothing".
O culto do cadáver, em funerais dos grandes deste mundo, que chegam a custar milhões de euros, não me parece fundamentar-se numa leitura cristã da nossa fé, mas em reminiscências do paganismo. Não apenas porque esse dinheiro, sobretudo se é do erário público, portanto dos bolsos dos contribuintes, poderia ser utilizado para fins humanitários, mas ainda mais porque a cerimónia fúnebre fazia parte dos ritos para assegurar uma vida eterna. Por exemplo, no império romano, queimavam-se os cadáveres dos plebeus, porque não eram destinados à vida eterna, reservada aos deuses e aos poderosos. Os faraós eram embalsamados.
Os cristãos, crentes na vida eterna para todos, tão-pouco praticavam a cremação. A Igreja Católica só nos anos 60 do séc. XX a autorizou.
Ocorreram-me estas considerações porque, hoje mesmo, na Inglaterra, se realiza, com todo o fausto, o funeral de Margaret Thatcher, a primeira mulher a presidir ao governo daquele país, e a ocupar o cargo pelo período mais longo, de 1979 a 1990. Ela própria tinha pedido que não houvesse exéquias oficiais, talvez por motivos religiosos também, mas a decisão já tinha sido tomada pelo último governo trabalhista. E a maioria do povo britânico está de acordo que ela o merece como ninguém.
Cristã devota, metodista, estreou a oratória em sermões, pregando pelas aldeias nos arredores de Oxford, onde estudou durante quatro anos. E levou para a política a sua maneira de declamar, com clareza e convicção. Do pai, um merceeiro e sábio autodidacta, aprendeu a ser contemporânea de si mesma, fiel às suas convicções. Deu-lhe um conselho, que ela praticou na Universidade e na vida política: "Never go with the crowd". "A lição mais importante que recebi de meu pai – dizia – foi a de seguir sempre as minhas próprias convicções. Não fazer seja o que for só porque outros o fazem".
As suas medidas económicas começaram a dar fruto em 1982, mas deveriam ter sido aplicadas com maior sentido social. Isto fez dela uma figura controversa, mesmo no partido conservador.
Porém, o saldo da sua era é largamente positivo. Deixou o Reino Unido melhor do que o tinha encontrado. Foi uma grande estadista. Dama de ferro ajudou a derrubar a cortina de ferro.
Além do Papa João Paulo II e da sua influência na Polónia, quem mais contribuiu para o desabar do império comunista foi a baronesa Thatcher e o seu amigo Reagan. Foi ela que convenceu o presidente americano de que se podia negociar com Gorbachov. "We can do business together".
A guerra das Malvinas, donde expulsou o invasor argentino, deu-lhe a áurea dos imortais do império britânico. Mas, se pudesse, alargava muito mais o Canal da Mancha.
Dedicava tanto apreço aos Estados Unidos como desdém à Europa. "Durante a minha vida", escreveu no 'Times' (6.10.99), "todos os nossos problemas vieram do continente europeu e todas as soluções vieram das nações de língua inglesa do resto do mundo".
Marcou a sua oposição à moeda única e a uma maior concentração de poderes em Bruxelas com uma tripla negativa: "No! No! No!".
Esperemos que continue a rezar, agora, das praias da eternidade, a oração atribuída a São Francisco de Assis, a sua oração preferida: "Onde houver discórdia, que eu leve a harmonia; onde houver erros, que eu leve a verdade; onde houver dúvida, que eu leve a fé; onde houver desespero, que eu leve a esperança!". E que os bons serviços do seu orar se alarguem à Europa e a todo o mundo. Foi toda a vida uma cristã convicta. R. I. P.

 

Pe Belmiro Narino, 17/04/2013

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Primavera Vaticana


Francisco touxe a Primavera pela mão. Porque já lhe tinha florido no coração!
Jorge Mário Bergoglio, Cardeal, deu ao colega de Cuba, Cardeal Jaime Ortega, uma cópia manuscrita do apelo que dirigiu a todos os Cardeais, antes do Conclave, autorizando-o, já depois de eleito Papa, a revelá-la. O que aconteceu no dia 23 de Março, em Havana. O Cardeal Bergoglio criticou a Igreja por ser demasiado "auto-referencial e teologicamente narcisística". "Uma Igreja auto-referencial conserva Cristo fechado nela e não o deixa sair para fora".
O facto de o Papa se apresentar como "Bispo de Roma" e de dar a sua primeira bênção "Urbi et Orbi" só na língua de Roma, soou como música nova aos ouvidos dos ortodoxos. João Paulo II já falava nos dois pulmões da Igreja, o Oriente, de Constantinopla, e o Ocidente, de Roma. Foi uma surpresa a presença do Patriarca de Constantinopla na tomada de posse do novo pontífice. A primeira vez que o Patriarca de Constantinopla, segundo na Igreja Universal, assiste à instalação do Bispo de Roma. Mas igualmente surpreendente foi a resposta de Francisco, que o acolheu como "meu Irmão André". Por enquanto, o Patriarca de Moscovo aceita uma aliança com a Igreja de Roma para "salvar a alma da Europa". A Ortodoxia é a comunhão das Igrejas auto-céfalas que reconhecem o primado honorário de Constantinopla. São mais de 200 milhões de fiéis. E como o Oriente hoje atravessa o Ocidente, e o Ocidente se difunde pelo Oriente, já não há territórios respectivos e fronteiras geográficas. Como há cada vez menos comunidades territoriais. Este sentido de pertencer a todo o mundo, um resultado da globalização em marcha, deverá reflectir-se na comunhão de todos os cristãos. É uma questão de tempo.
Primavera é fé e esperança. Talvez vejamos florescer um jardim, com muitas flores diferentes, de que serão jardineiros todos os patriarcas, herdeiros de Pedro e de André. O obstáculo, por agora, é o primado tradicional, agravado pela infalibilidade, do Papa. Mas a referência de Francisco à Igreja de Roma como presidindo, na "caridade", às demais Igrejas cristãs, pode traduzir-se numa junção harmoniosa do "primado" do Bispo de Roma com a colegialidade, dos bispos e de todos fiéis.
Apresentar-se, primeiro, como Bispo de Roma, é um acto cheio de simbolismo. Um desafio a todos os bispos para serem os pastores das suas dioceses e "viverem com o cheiro das suas ovelhas". "Devemos sair para a rua, para as 'favelas', onde há sofrimento, sangue, cegos que querem ver, e prisioneiros escravizados pelos patrões do mal".
De facto, muitos dos problemas da nossa Igreja hoje em dia provêm do distanciamento entre a hierarquia e a gente. Há muita alienação, e resignação pessimista, dos agentes pastorais. A Primavera de Francisco vem acordar a Igreja deste neurótico pessimismo.
Mas a melhor lição que deu na arte de ser bispo foi a cerimónia do lava-pés, numa prisão de jovens delinquentes. Em vez dos tradicionais 12 membros do clero, Francisco escolheu 12 prisioneiros, entre os quais dois muçulmanos e duas mulheres. Este gesto, na Bíblia, feito por uma serva, significa boas-vindas e intimidade. O Papa quebrou o tabu. Talvez para proteger o celibato, as rubricas mandam que os 12 sejam do sexo masculino. Francisco "interpretou" as regras à sua maneira, lavando e beijando os pés de todos. Os mais puritanos e reaccionários escandalizaram-se mais com as duas mulheres que com os muçulmanos.
Francisco de Assis não tinha medo da ternura, como o novo Francisco nos aconselha. Entre ele e Clara, e as outras Irmãs, não falta amor e ternura, mas numa transparência cristalina de intenções sublimes, como de corpos ressuscitados, sem ambiguidades mórbidas. Dois loucos de Deus.
Como Cardeal de Buenos Aires, já em 2012, tinha declarado que o celibato não é uma questão de fé, mas de disciplina. Portanto, pode mudar.
Vinte e um parlamentares britânicos, católicos, acabam de enviar ao Papa uma carta neste sentido. Há cerca de 200 ex-ministros anglicanos, que foram admitidos como padres católicos, na Inglaterra e no país de Gales, muitos deles casados. Precisamos de padres para administrar os sacramentos. Ordenar homens casados seria uma benção para a Igreja e afigura-se urgente para a nova Evangelização. Isto não significa abolir o celibato, mas conservá-lo como uma "vocação sagrada", embora nem todos a possam seguir. Talvez seja esperar muito. Mas "esperança" é uma das palavras preferidas de Francisco, Bispo de Roma.


Pe Belmiro Narino, 10/04/2013

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Os heróis e os vilões assinalados


Portugal e os portugueses, que julgávamos tornados anímicos pelas sucessivas perfusões
intraven(en)osas da troika, tiveram um sobressalto ressacado quando um velho demónio assomou à porta, gracejando como um guinhol justiceiro. Foi aplaudido, foi vaiado, mas deu umas quantas cacetadas a este e àquele, tanto à esquerda como à direita. A diferença entre esta fantochada "actuação" (política) e os teatrinhos de robertos é que esta não me deu vontade nenhuma de rir.
Quer se goste dele ou se execre o homem, a verdade é que o regresso de José Sócrates criou uma das ondas mediáticas com mais impacto dos últimos tempos na sociedade portuguesa.
 Primeiro, com o rol das petições contra o convite que lhe foi dirigido pela RTP para ser comentador do canal público. Tantos signatários chegariam para que o assunto fosse debatido várias vezes no Parlamento (recorde-se que o mínimo requerido para que um abaixo-assinado chegue à Assembleia da República é de quatro mil assinaturas). Depois, com a entrevista que deu a Paulo Ferreira e Vítor Gonçalves, a 26 de Março, na RTP, e que mereceu reacções e comentários de ponta a ponta do espectro mediático, político e público.
É que toda a gente tem opinião sobre José Sócrates. Porque este é um "vilão" que nos deixou marcas.
Ser contra a presença de José Sócrates na RTP não é ser contra a liberdade de expressão, é reclamar o respeito pelos portugueses que pagam a taxa de televisão ao Estado e têm o direito de contestar a programação.
Ser contra José Sócrates na RTP é não querer ver nem pintado alguém que fez promessas eleitorais em 2005 e depois fez exactamente o contrário, cometeu um despesismo público leviano, que não abrandou com a crise económica e financeira, criou uma série de instituições inanes, outras fictícias, fez negociatas chorudas em proveito próprio, dos seus próximos e em detrimento do país, e foi também quem chamou a troika (é bom pôr os pontos nos iis), quando já era tarde demais. Adiou por mais de um ano a decisão, o que levou a que as medidas impostas sejam agora difíceis de amenizar no tempo. Quando finalmente chamou a ajuda internacional, lavou daí as mãos e deu de frosques...
Ser contra José Sócrates na RTP é simplesmente ter o direito de mandar calar quem se exilou em mordomias parisienses quando Portugal agonizava, debicando croissants no 16° arrondissement, autista à fome e ao desespero de muitos portugueses.
Nesse momento José Sócrates não se exprimiu, porque haveríamos de o querer ouvir agora? Que ninguém se (des)iluda, este come-back é por puro oportunismo político.
José Sócrates volta à política e o povo aguarda a palavra messiânica dos seus lábios. Mais uma vez, como em 2005, muitos vão erigi-lo em D. Sebastião. Aos que já já me respondem que isso não acontecerá, recordo que José Sócrates não é menos odiado do que Cavaco Silva foi nos dez anos que passou no Governo e, no entanto, os portugueses elegeram o professor algarvio duas vezes (duas!) para o cargo máximo da nação. Agora parecem surpreendidos por se revelar tão mau presidente (?).
José Sócrates só regressa porque o povo é mesmo assim, tem a memória curta e precisa de heróis, dons sebastiões montados em brancos alazões, um deus ex-machina que intervenha, o salve e lhe dê esperança.
Mas felizmente, nem todo os portugueses são assim. Há os que não esperam, agem. Há os que não aguardam, ousam, tentam, emigram. Enquanto uns vociferam e vituperam desde o Restelo, outros enfrentam o oceano. Não por simples aventureirismo, mas por necessidade e pragmatismo na acção, esse ímpeto que sempre foi a verdadeira alma dos portugueses ao espalharem-se mundo fora. Foi isso que nos fez grandes.
 Cessem dos D. Sebastiões, do mito e da apatia que enaltecem, o futuro está na acção, o futuro está na nossa mão.

José Luís Correia, 03/04/2013
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Um Papa que seja o nome que tem, pontífice


Pontífice, construtor de pontes. Assim esperamos. "Não deixeis que vos roubem a esperança", pediu Francisco aos fiéis no Domingo de Ramos.
Há quase 200 anos que não havia um Papa de uma ordem religiosa. Este é, e duplamente, jesuíta feito franciscano. Mais que franciscano, Francisco. No nosso tempo, a correr num desfile de imagens rápidas e efémeras, não nos basta um Papa "superstar". Antes, alguém que vá à raiz das coisas, à fonte do Evangelho. E à frente, como Jesus, na festa dos Ramos e na subida do Gólgota. Alguém para quem o poder é servir, como ele disse no dia da eleição. Por isso temos razões de esperar. E também porque pertencia a uma ordem religiosa. Os frades, os religiosos é já a Igreja em democracia. Estão habituados a assumir o cargo de superior, para depois o largarem ao fim do termo.
João XXIII, o bom Papa João, abriu, no Vaticano II, as portas à Igreja, como ele a queria, renovada: "A querida mãe de todos, terna, paciente, cheia de misericórdia e bondade". Assim ficou retratada nos documentos finais. E o Papa que veio da Argentina pede-nos que não tenhamos medo da ternura. Mas não é esta a imagem que a Igreja dá de si mesma, pelo menos no nosso mundo ocidental, como diz o professor John O'Malley, jesuíta americano. "Os meios de comunicação social vêem-na como uma instituição auto-suficiente, tão lenta em limpar a própria casa como lesta a armar-se em polícia moral dos outros. Moral, entenda-se sobretudo sexual. Vêem-na como tendo pouco que dizer quanto às realidades do nosso tempo. Que o Papa de hoje não se preocupe com a imagem mas com a realidade que está na sua origem. Não é fácil encontrar remédio, mas eu penso se deva alterar o modo de escolher os bispos, sobretudo segundo os critérios centralistas dos últimos 30 anos".
Na Igreja Latina, não há mais de 37 bispos em cuja eleição intervenha a diocese. A esmagadora maioria é nomeada pelo Vaticano. Importa dar voz ao povo de Deus. Não será mais evangelizador dinamizar as conferências episcopais que fazer-se pároco do mundo inteiro, como João Paulo II? O Papado não é um sacramento, é uma função, que não se vê por que motivo não poderá ser temporária, como acaba de o sugerir a demissão de Bento XVI.
Que o Papa não se sacralize em pomposos ritos medievais, mas que até na maneira de trajar se aproxime da gente. Como Francisco está a fazer. E nunca mais encobrir, mas reconhecer humildemente os pecados da Igreja, passados e presentes, e fazer como todos penitência por eles.
Fala-se de nova evangelização. Mas como fazê-la com os velhos evangelizadores? Neles se deveria primeiro aprofundar a fé e a formação religiosa. Como pode pregar os mandamentos e os sacramentos quem os não pratica? O problema, para os que criticam a Igreja, não é Deus nem Jesus Cristo, mas a Igreja. Sobretudo os reaccionários, que pouco respeitam a fé e menos ainda a pratica. Só ritos e nomes.
Que o Papa seja o nome que tem, pontífice, o construtor de pontes dentro da Igreja, de Roma com as outras Igrejas, com todas as crenças, com a humanidade. Construir pontes é construir a paz.
Que o Papa seja, e nos ensine a ser, como discípulos de Cristo, semeadores da paz e do bem. Que nos ajude a participar inteligentemente na Eucaristia e a dela nos alimentar, com palavras claras, para sabermos defender coerentemente a vida humana, não só contra o aborto e a eutanásia, mas contra o mercado das armas, a poluição da atmosfera, da terra e das águas, o terrorismo financeiro, as desigualdades sociais.
Que o Papa entenda a linguagem da rua, que escute o povo, e não apenas os bispos. Mas que deixe os bispos decidir o que é melhor para cada diocese: ordenar homens casados e promover o diaconado das mulheres, para começar.
E que as mulheres não sejam tratadas apenas como criadas de servir na teologia. Padres ou bispos que não se oponham à ordenação das mulheres ou a um honesto debate sobre os problemas da sexualidade e/ou da procriação não fazem carreira eclesiástica. E por isso do topo não vem nada de novo (Tina Beattie, teóloga). O novo Papa deve restabelecer a liberdade de investigação teológica e bíblica, a homens e mulheres, e, finalmente, reformar a Congregação para a Doutrina da Fé, derrubar-lhe os muros, para que não cheire mais a Inquisição.


Pe Belmiro Narino, 27/03/2013

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Papa Francisco


Francisco Papa! A anástrofe não é puramente literária, é sacramental. O nome saiu-lhe com tanta espontaneidade, logo que foi eleito 266o Bispo de Roma, que até nos parece ditado do céu, como João, o Baptista. "Francisco é o meu nome".
Argentino, filho de emigrantes italianos, chamava-se Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires. Afinal, S. Malaquias, o nemésico adivinho dos papas, enganou-se mais uma vez. Não é o Apocalipse, é o "Cântico das Criaturas". "Alguém lutou com Jacob até ao romper da aurora". Jacob lutou e não se deixou vencer, mas ficou marcado para sempre. "O teu nome não será mais Jacob, mas Israel" (Cf. Génesis 32, 31).
Um nome, um programa. Depois da noite do conclave, um outro Peniel: "Francisco é o teu nome".
Em 1223, Francisco pede a bênção ao Papa de Roma; 790 anos depois, o Papa de Roma pede a bênção a Francisco de Assis. "Vai e restaura a minha casa, a Igreja". Franciscanizar a cristandade?
Francisco é uma enciclopédia, uma biblioteca, um tipo. Yves de Congar, grande dominicano, deixou escrito que "depois do único (Cristo), Francisco foi o primeiro".
Francisco de Assis, o pobrezinho, tão habitado por Deus que até na dor cantava de alegria, o homem-luz, que não acreditava nas cruzadas com armas e arriscou a vida, com sã ironia e bom humor, para se avistar com o sultão Lelek-al-Kamil, e com ele rezar ao mesmo Deus, contemporâneo de todas as utopias, Homeros, Cervantes, Pessoa, Shakespeare, Teresa de Calcutá e as outras Teresas, Erasmo e T. More, Jorge Luis Borges, da terra do novo Papa, e de todos os espíritos humanos, imagens do divino, que do divino criaram obras gigantes na literatura, na música, na santidade, Francisco de Assis é tão grande que não cabe numa só ordem ou congregação, e por isso tem sido sequestrado por rivalidades monásticas ao longo dos séculos. Por amor do Evangelho e da verdade, porque nunca mais apareceu outro "poverello", uno, mas que representa multidões.
Agora, aparece num Papa, vindo do fim do mundo, com a coragem de abrir caminhos, como ele. Francisco, o "homo viator", o andarilho do infinito. Quem não caminha sente que está a mais.
Este Papa também sentiu o "fogo divino" do movimento, de que fala Platão, ao resumir o seu programa em três verbos ("caminhar", "construir", "confessar").
Antes de dar a sua primeira bênção, pediu a bênção ao povo de Deus como Jacob a pediu ao Deus de Israel. Peniel, rosto de Deus. Deve conhecer melhor do que nós o endereço de Cristo, porque conhece as favelas de Buenos Aires (Ch. Bobin). Por isso escolheu o nome do primeiro, depois de Cristo, o único.
Como Francisco de Assis, o homem de Buenos Aires tem vivido a religião com amor e alegria, sem ceder ao pessimismo no mundo cinzento da actualidade. Francisco, o alquimista utópico que transforma em bem-aventuranças todas as situações, que canta o sol, a lua e as estrelas, com o ardor cósmico que só um cientista como Teilhard de Chardin havia de compreender, não um romântico filantropo da humanidade mas um apaixonado de todos os seres vivos, traz-nos, do seu berço medieval, o melhor modelo para o homem moderno: uma cidade-mundo de compaixão, fraternidade, harmonia e bom humor.
Este Francisco é homem para pôr tudo a caminhar, construir e confessar. Há muitos estaleiros à espera. O Vaticano II abriu algumas janelas para o diálogo, o regresso às raízes do Evangelho, os sinais dos tempos, a atenção a todos os que, pelo Baptismo, fazem parte do povo sacerdotal de Deus. Falta agora abrir as portas ao mundo de hoje, dentro e fora da Igreja, cultura, ciência e outras religiões, a todos os que se sentem esquecidos e incómodos. E, quanto aos insaciáveis do saber, filósofos e teólogos, que legítima e sinceramente exprimem opiniões diferentes, deixá-los seguir os exemplos de S. Agostinho e S. Tomás de Aquino, que foram criativos no diálogo com a cultura do seu tempo. Em vez de repeti-los, melhor será imitá-los, na mesma curiosidade de mais saber. Tudo é vivo na Igreja. O sacramento é vivo. Haverá que estudar melhor a penitência e o matrimónio, por exemplo. "Se, na verdade, a instituição da penitência da Igreja é viva, continuará a transformar-se no futuro, sem perder a sua essência. (...) Se, porém, não se verificassem (transformações futuras), a instituição de Cristo estaria petrificada e morta" (D. António Ferreira Gomes, in "Cartas ao Papa", p. 262).

Pe Belmiro Narino, 20/03/2013

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Carta ao novo papa

Esta carta que ouso escrever-lhe, Santo Padre, confio-a aos intercessores cuidados de Santa Catarina de Sena, por ser garantia de chegar ao destinatário. A missiva e a mensagem.
Não para regressar, como naquele tempo, de Avinhão a Roma, mas para dispensar, ao menos pouco a pouco, os faustos aparatosos que não revelam, mas velam, o rosto de Jesus. Esta ideia me veio, num sonho, em oração. E a V. Santidade a confio, porque o eleito não poderá esquecer, ao organizar as suas prioridades, que sucede a um papa inovador. A sua inesperada decisão de abdicar criou um momento histórico. E a história não pode parar. Por isso lhe peço simplicidade para a Igreja. E santidade.
Uma dúvida me tortura, ao recitar o Credo. Creio que a Igreja é una, santa, católica e apostólica. Creio, sim, mas, como aprendi com um bispo já falecido, D. António Ferreira Gomes, desgosta-me ver a santidade entregue à burocracia. Não seria melhor, para exemplo dos fiéis, deixar a proclamação das virtudes dos irmãos na fé às Igrejas particulares, como se fazia ao princípio?
E cuidar mais em fazer santos, como os cartuxos, do que em canonizá-los, como aos fundadores?
O citado bispo, D. António, teve a ousadia dos profetas, ao proclamar, no Concílio Vaticano II, que uma vez "restabelecida a realidade essencial e institucional do Colégio Episcopal 'cum Petro et sub Petro', a razão de ser do Colégio cardinalício deixava de existir". Até porque, ao princípio, cardeal era sinónimo de incardinado (do latim "cardo", gonzo), título dispensado a todo o clérigo, e só pelo séc. VIII os saudosistas das grandezas romanas lhe deram o significado, e os privilégios, das altas funções imperiais, militares e de governo.
Com o Colégio de todos os bispos "cum Petro et sub Petro" a funcionar como deve, torna-se redundante, e arcaico, o cardinalato. O Sínodo dos bispos, uns 20 anos depois do Concílio, verificou-se não relevante, porque tudo foi preparado e terminado pelos cardeais.
D. Frei Bartolomeu dos Mártires, no Concílio de Trento, já advogara a necessidade de uma "eminentíssima e reverendíssima reforma" para os "eminentíssimos e reverendíssimos cardeais". D. António vai mais longe: colegialidade episcopal e função cardinalícia são incompatíveis. E é também um obstáculo à percepção da autoridade de Pedro como presidência na caridade. Uma coisa é "com Pedro e sob Pedro", outra, "com a Cúria e sob a Cúria". Cremos no ecumenismo.
Finalmente, para obviar à "apostasia silenciosa" de tantos baptizados, na nossa velha Europa, que sentem nada partilhar com a hierarquia católica, só resta a V. Santidade envolver a sério o povo de Deus na vida da Igreja.
O canonista John Beal recorda-nos o que diz a "Lumen Gentium" (23): o bispo é "o princípio visível e o fundamento da unidade na sua Igreja particular" e "representa a sua própria Igreja". Portanto, um bispo nomeado sem significativa participação da comunidade não pode ser "considerado um legítimo representante dessa Igreja".
As igrejas esvaziam-se pelo desgaste e ausência de contacto entre o clero e o povo. O papa Leão I, o Grande (440-461), dá-nos a receita: "O que está à frente de todos deve ser eleito por todos!".
Rousseau pensava que a democracia só funcionaria bem se os homens fossem anjos. Os anjos ajudarão à democracia na Igreja, como ajudam na política. Depende da vontade dos homens.
Que seja a diocese, todo o povo de Deus, a eleger o que julgue mais digno para bispo. O eleito governe por um tempo fixo ou renovável, mas nunca seja mudado para outra diocese, onde não foi eleito. Não é este o conceito paulino do Corpo de Cristo?
Foi a partir da crise de 1968, com os debates sobre os meios de contracepção, que muitos católicos deixaram de escutar alguns dos ensinamentos da Igreja. E sentiram-se traídos com as crónicas mal contadas de abusos sexuais. Não se sentiam na sua Igreja.  A Igreja não pertence ao papa ou
aos clérigos, mas ao povo de Deus. O Concílio Vaticano II dá-nos teologia
para alimentar os leigos católicos na sua trajectória para o futuro. Bem-aventuradas as tensões que então surgiram. Muitas não foram resolvidas. Se queremos que produzam fruto, não devemos tratá-las como uma ameaça mas como um dom. Todos somos Igreja.
Da minha "cela interior", com Santa Catarina de Sena, vão os melhores votos, para V. Santidade, de um humilde presbítero da Igreja de Cristo.


Pe Belmiro Narino, 13/03/2013

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A chave ou o dinheiro
A troika e o Governo de Passos Coelho parecem a proverbial anedota do bêbedo e da chave que o filósofo esloveno Zizek cita com frequência. Um bêbedo anda há horas à procura da chave do carro debaixo de um candeeiro. Um homem que passa por ali oferece-se para o ajudar. "Tem a certeza que perdeu a chave aqui?". Resposta do bêbedo: "Não, perdi-a ali atrás, mas aqui tenho mais luz para procurar".
Que a austeridade não é solução para salvar a economia, é a conclusão a que já todos chegaram, incluindo a 'troika'. O próprio FMI já veio dizer que se enganou nas contas e que a austeridade, afinal, provoca mais desemprego e mais recessão, validando o que o norte-americano Paul Krugman, prémio Nobel da Economia, vem repetindo sem que ninguém lhe dê ouvidos. Ninguém quer largar o candeeiro para procurar no escuro as verdadeiras soluções para a crise económica europeia. Deixar o euro é tabu ("o dinheiro!", gritava-se num velho programa de televisão), como é tabu renegociar a dívida que todos sabem ser imposível de pagar. Ou recusar simplesmente pagá-la, como fez com sucesso a Islândia.
Todas as tentativas de diálogo esbarram no mesmo dogma, o dogma do bêbedo que sabe muito bem que a chave não está ali, mas que não quer mudar de táctica – nem de poiso. E é por isso que já poucos acreditam que o Governo, que repetiu a quem o quis ouvir que iria "para além das exigências da troika", ande mesmo à procura da chave. É Krugman novamente quem toca na ferida, citando a "doutrina do choque" denunciada por Naomi Klein.
"Do Chile dos anos 1970 até hoje, ideólogos de direita têm aproveitado as crises para impor uma agenda que não tem nada a ver com resolver essas crises, mas sim com querer impor a sua visão de um mundo mais duro, mais desigual, de uma sociedade menos democrática". Não é isso mesmo o que o Governo de Passos Coelho faz quando reduz as prestações sociais, os cuidados de saúde, a educação, e todos os serviços a que o Estado está obrigado constitucionalmente? Não é isso que faz quando enche os oito mil milhões do buraco do BPN com os salários e as pensões dos contribuintes? Quando dá mais de cinco mil milhões de euros aos bancos privados, mas insiste em cortar quatro mil milhões aos cidadãos?
Tentar dialogar com quem assim nos desgoverna é esperar bom-senso do bêbedo que não larga o candeeiro – conversa de doidos ou de surdos. Mas não é só a democracia que se esvai de sentido neste autismo teimoso: o protesto clássico também perde força.
É por isso que a "Grândola" que há duas semanas cala membros do Governo, culminando na manifestação de 2 de Março, é tão subversiva. Há uns dias, um editorial do Público, em geral bastante conservador, dizia que o Governo ainda ia ter saudades de quando tinha de enfrentar pedras e manifestações. Porque ninguém sabe como calar a "Grândola", nem como lhe responder. A canção de Abril serve para o mais radical dos protestos, aquele que vai à raiz do problema: o Governo não tem legitimidade para governar em nosso nome, é um usurpador. E não se discute com usurpadores.
Entre quem quiser na guerra dos números da manifestação de sábado, mero cálculo economicista. Porque o que mais impressiona no protesto de 2 de Março não são os milhares que saíram à rua para dizer basta, sem que para isso tenham sido convocados nem incentivados por qualquer partido. O mais impressionante é o número esmagador de velhos e reformados que as fotos documentam. Muitos participaram na sua primeira manifestação de sempre: "passaram pela ditadura, pelo PREC e por toda a democracia sem usarem desse direito. E só agora, com mais de 60 anos de vida e quase 40 de democracia, é que se sentiram empurrados para a rua", diz Daniel Oliveira no Expresso.
No Porto, uma imagem do fotojornalista Ricardo Meireles que circula no Facebook é a imagem de um país exausto, de um país que sabe que perdeu mas que ainda assim não desiste. Na foto vê-se um homem que parece ter oitenta anos. Veste sobretudo longo por cima do pullover e da gravata, um ar burguês de outro século. Com uma mão apoia-se numa bengala, periclitante, com a outra segura um cravo. Está só no meio da multidão, sem o apoio de confederações, associações ou sindicatos. À mesma hora, em Lisboa, um cartaz tosco pintado em papelão é a única companhia de um homem de cabelos brancos, rosto marcado pelas rugas: "Estou só. O meu filho emigrou".
Foi a olhar para este homem, imortalizado por um fotógrafo anónimo na tristeza imensurável do olhar, que percebi por que razão este protesto me comove tanto. É um país que se recusa a morrer, apesar de ter tudo e todos contra ele. É um país exaurido e sem fé na mudança, mas em que sobrevive, irredutível, um anseio humano de dignidade e decência. Um país que luta sem saber se ainda vai a tempo, tristemente só.



Paula Telo Alves, 06/03/2013

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Conclave Quaresmal
Pela surpreendente decisão de abdicar, este Papa foge ao simplista binómio de liberal/conservador.
E cria o maior acontecimento na Igreja Católica, desde que João XXIII convocou o Concílio Vaticano II. Foi como o disparo de uma bomba.
Podia ter escolhido uma data importante, por exemplo o seu 86° aniversário, em Abril. Mas não, deu a notícia na Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o dia do doente em toda a Igreja. Há rumores de um agravamento dramático do seu estado de saúde, mas tudo são meras suposições. Talvez tenha pesado na sua decisão a visita de Rowan Williams a Roma, em Outubro do ano passado, quando este anunciou ao Papa que deixaria o cargo de Arcebispo de Cantuária, em Dezembro, para voltar ao ensino, na Universidade de Cambridge.
Um dos pontos altos do seu pontificado foi a visita à Grã-Bretanha, em 2010. Bento XVI saudou, comovido, um povo que ama a liberdade, liberdade de palavra, liberdade política, e que manifesta respeito pela lei. Um povo cívico. Se não iniciou uma era de mais liberdade no interior da Igreja, também nada acrescentou em termos de rigidez. Antes pelo contrário. Teve, algum tempo antes, um encontro prolongado com Hans Küng, ao qual teria confidenciado: "Isto é o que eu penso, embora outros possam discordar".
Outra data marcante do seu pontificado foi a encíclica "Caritas in Veritate" de 2009, sobre os problemas existenciais do nosso tempo. É um monumento no género. E certamente porque o Papa aceitou variados contributos de académicos leigos, num ambiente de completa liberdade. O método de trabalho era o seguinte: "a resposta a uma má ideia é uma ideia melhor e não a repressão disciplinar" (Clifford Longley, The Tablet, 16.02.13).
Não houve sinais de alteração no estilo de governo colegial dos bispos, herdado de João Paulo II. Mas as palavras em latim, a informar da sua inesperada abdicação, denotam um inédito conceito do papado, sobretudo a partir do centralismo de meados do séc. XIX: a infalibilidade foi tida como um privilégio especial, uma pessoal ligação ao divino. O múnus pontifício é encarado como algo diferente dos outros bispos. Paulo VI reconheceu-o na sua dolorosa solidão. E João Paulo II foi o “Ecce Homo” dos nossos dias, o herói sofredor de uma grandeza sobre-humana.
A demissão anunciada de Bento XVI é uma iniciativa pessoal de Joseph Ratzinger, que considera o papado humildemente como uma função, exigente em termos humanos de saúde e lucidez. "Força de espírito e corpo é necessária".
"Ab esse ad posse valet illatio" significa que o que já foi feito se pode fazer de novo. Já houve mais papas que resignaram, embora apenas oito ao longo de mais de 2000 anos. E tudo está previsto no Código do Direito Canónico. Regras para a resignação, regras para o conclave, com início entre 15 e 20 de Março. Já teremos novo Pontífice para a Páscoa. Mas quem será?
A ausência de Joseph Ratzinger será a maior presença do conclave. É impossível ignorar seu gesto revolucionário e não ponderar as suas razões.
Não seria de admirar que, depois deste momento verdadeiramente histórico, viesse um Papa bastante jovem ou do terceiro mundo. Um candidato carismático é o Cardeal Luís António Tagle, de 55 anos, arcebispo de Manila. Mas outro, menos jovem, é um sucessor provável, próximo e complementar de Bento XVI, o Cardeal ganês Peter Turkson.
Foi um dos inspiradores de "Caritas in Veritate" e, à frente do Concílio Pontifício para a Justiça e Paz, difundiu por toda a parte um espírito de abertura.
O mundo inteiro está em dívida para com a África. Não que seja este o motivo da sua eleição, mas seria uma oportunidade extraordinária, e significativa, de a Igreja se revelar verdadeiramente universal. E de reviver
Peter Hudson, 64 anos, é um dos poucos africanos que concluíram doutoramento no Instituto Bíblico de Roma. Nomeado Arcebispo em 1992, no seu país, e Cardeal, em 2003, ocupa o seu cargo, em Roma, desde 2009. Impressiona pela cultura e simplicidade e por um excepcional sentido de humor.
"Ex Africa semper aliquid novi": há sempre algo de novo a vir da África (Caius Plinius Secundus).


Pe Belmiro Narino, 27/02/2013

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Sinais dos TemposQuando, em 28 de Maio de 2009, num gesto de paternal compaixão, Bento XVI visitou a cidade de Áquila, assolada por um violento tremor de terra, surpreendeu os jornalistas que o viram orar, em silêncio, junto ao túmulo de Celestino V. E deixou-lhe, de presente, o pálio que lhe fora oferecido no início do seu pontificado, em 2005.
Ninguém lhe percebeu, na altura, qualquer significado. Mas é difícil agora não imaginar que Bento XVI sentira alguma inspiração naquele seu predecessor, que abdicara ao fim de cinco meses de pontificado.
Já tinham passado 27 meses depois da morte de Nicolau IV. Divididos em duas facções, alimentadas por ambições políticas, chegando a confrontos de rua com destruição de palácios e igrejas, os cardeais deslocam o Conclave para Perusa, em Outubro de 1293. Tudo continuou na mesma, até que, na Primavera do ano seguinte, chega a carta de um eremita, com voz de profeta.
Que os cardeais elegessem quanto antes o vigário de Cristo, para evitar castigos de Deus... O conclave viu nele a solução: Pedro Morrone, octogenário, é eleito papa. Os romanos acolheram, com entusiasmo delirante, o velho eremita de longas barbas, montado num jumento. "Eram mais de 200 mil na sua coroação e eu no meio deles. E o mais estranho é que não vinham para pedir prebendas mas apenas para serem abençoados" (Ptolomeu de Lucca).
Como não conseguia lugar, no palácio pontifício, para os seus hábitos de anacoreta, aceitou ir viver para Áquila, mas veio a abdicar ao cabo de cinco meses. Todos viram na sua decisão um acto de lucidez, menos alguns que tinham explorado a sua simplicidade.
Foi também uma atitude de sabedoria e prudência a resignação voluntária de Gregório XII, em 1415, tentando servir de exemplo aos antipapas, para que em novo conclave se elegesse um outro papa, o legítimo. São desses tempos conturbados João XXIII ("grande no temporal e nulo no espiritual", como o descreve S. Antonino!), Bento XIII, Clemente VIII e Bento XIV, que não constam da lista dos Papas.
A anunciada resignação de Bento XVI, para a próxima semana, embora numa situação política e religiosa muito diversa, tem algo em comum com os dois predecessores: todos fizeram o seu tempo, no sentido grego de "Kairos", o momento oportuno.
A história já deu razão aos dois primeiros. Quanto a Bento XVI, recordaremos sempre, com saudade e admiração, a sua figura digna, de passos miúdos, sorriso acolhedor, palavras de profunda acuidade intelectual, peregrino do mundo, mas sobretudo do espírito. E isto durante oito anos.
Fragilizado (o seu irmão Georg anunciou que os médicos lhe tinham proibido viagens transoceânicas!), poderia ir até ao fim, como João Paulo II. Todos admirámos o génio e o heroísmo do papa vindo de Leste, que desafiou um Império acabando por desmoroná-lo, mas a sua exemplar lição de sofrimento nunca poderá ser repetida. Também foi um tempo, o seu tempo.
Bento XVI não faz mais que confirmar, com a sua atitude de sabedoria, o que tinha confidenciado ao jornalista Peter Seewald, que o entrevistara em 2010: o papa poderá resignar se já "não for física, psicológica e espiritualmente capaz de gerir os deveres do seu múnus". "Tem o direito e mesmo, em determinadas circunstâncias, a obrigação de se demitir". "Mas nunca como alguém a fugir de uma situação de perigo, para a entregar a outrem".
Por isso se aventuram alguns a dizer que o ex-papa continuará presente nas decisões do seu sucessor, mais não seja porque muitos dos cardeais têm o mesmo perfil. Inclusivamente os de África, Ásia e América.
Mas, seja como for, e apesar dos problemas herdados dos tempos de João Paulo II, como os escândalos de pedofilia, a agressão do Islamismo, o indiferentismo europeu, este é um dos momentos mais altos do seu pontificado. O que prova a diferença entre o papa e os políticos. Estes nunca se demitem em tempo de sucesso, mas quando o fracasso assoma. Já dizia Tácito, o sucesso tem muitos pais, o fracasso é órfão.




Pe Belmiro Narino, 20/02/2013

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Quarentena espiritual

Jejum e abstinência, entrada e saída do retiro da Quaresma. Tempo entre os dois abismos, o alto e o profundo. Uma quarentena interior para saborear o gosto da pátria, porque todos nascemos em terra estrangeira. "Depois deste desterro nos mostrai Jesus", rezamos na Salve-Rainha.
Jejum é saúde, é dieta, para o corpo. Mas o jejum da quaresma é jejum do corpo, dos seus hábitos diários feitos de tempo e espaço, para chegar ao lugar da alma, a terra onde dói entrar. Porque o contexto dos nossos horários de descanso e trabalho é um espesso véu que só o silêncio atravessa, num vislumbre do horizonte divino que nos cativa.
A quaresma é o tempo de um silêncio mais profundo e mais longo, tempo de acertar a nossa bússola espiritual para a realidade do nosso ser. Nascemos com um guia na alma, para a viagem interior que nos leve ao mais íntimo de nós mesmos. Distraídos com o imediato das aparências, vamos adiando o encontro com as verdades últimas, onde nos levará a procissão do silêncio, ao ritmo da alma.
Uma vida esbanjada não é uma vida imperfeita, mas uma vida pequena, não vivida em abundância. Somos e seremos sempre imperfeitos. "Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better". Enganar-se, mas sempre melhorando, é a minha tradução do genial Samuel Beckett.
Aceitemos as nossas imperfeições e procuremos a Deus. Crer-se perfeito é tentar a Deus. Como dizia Pascal, "Deus esconde-se àqueles que O tentam, e manifesta-se àqueles que O buscam".
Modas e modelos superficiais têm de morrer para dar lugar a algo de belo e eterno. No despojo da simplicidade e do silêncio, os véus começam a rasgar-se. E, para além do olhar, aprendemos a ver, para além do conhecer, aprendemos o saber e o sabor do que Teilhard de Chardin chamou Le Milieu Divin, uma luz divina sobre as nossas vidas ordinárias, o desdobrar espantoso da Incarnação. "Mesmo o mais humilde trabalho das nossas mãos serve para completar, magnificamente, os mais altos níveis da Criação. Seja o que for que fizermos, estamos a construir o pleroma, a fazer Cristo cumprir-se".
O nosso quotidiano atulhado de ocupações mal nos deixa descobrir a saída para esta jornada da alma que se deixa invadir por Deus. Porque a graça de Deus é uma invasão do nosso ser e agir, a meditação na divina imanência, e o nosso contributo para a contínua Incarnação. Nada há de mais certo que a santificação possível da acção humana (T. de Chardin). Tudo o que fizerdes, fazei-o em nome de Cristo, o que significa, em S. Paulo, em íntima união com Nosso Senhor Jesus Cristo.
O jejum da Quaresma convida-nos a renunciar ao ninho do nosso conforto. Sem deixar o ninho, a águia não voa para o Sol.
Só o buscador de silêncios encontra Deus. E é nestes silêncios que Deus se nos manifesta, na paixão e na compaixão. Como um vento que nos sacode dos ramos da árvore até à raiz, como trigo malhado na eira. Uma nudez que nos fará sofrer até sentirmos, como o poeta, que "não é Deus que está no meu coração, mas eu que estou no coração de Deus" (K. Gibran).
A Quaresma faz-nos pensar que as nossas casas, por mais sólidas e majestosas que sejam, não podem abrigar os nossos sonhos de infinito, porque o infinito dentro de nós tem uma morada no paraíso.
A Quaresma faz-nos pensar que a cidade só é mal gerida se houver desgoverno na nossa alma. Um povo de gente livre não elege aventureiros incompetentes ou desonestos.
A Quaresma dá-nos mais tempo para a oração. Um homem, quando reza, encontra-se, no ar das alturas, com todos os que rezam ou rezaram à mesma hora.
A Quaresma começa hoje, com a imposição das cinzas, que nos dá uma sóbria ideia do contexto da nossa existência. Pó! É a condição humana, e não há maneira de lhe escapar. Mas aqui está o sublime paradoxo. É que Deus não resistiu a esta humana condição. Thomas Merton, o grande místico do séc. XX, escreveu: "Ser membro da raça humana é um glorioso destino. Apesar de tanto absurdo, sofrimento e estupidez, apesar de tantos enganos e desenganos, o próprio Deus se gloriou em se fazer membro da nossa raça", Deus feito homem, na Incarnação.
Que a vigília quaresmal nos ajude a preparar, em nós e à nossa volta, a aurora da Ressurreição.



Pe Belmiro Narino, 13/02/2013

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Viva o 10 de Junho e a Restauração

A cruzada contra os feriados continua. Primeiro foi o PS de Sócrates, numa manobra anticlerical contra os feriados religiosos. Agora é o PSD de Passos Coelho, em nome da produtividade. São duas faces da mesma moeda que traem a mesma intenção, já denunciada há 132 anos por Paul Lafargue. Num panfleto intitulado "O Direito à Preguiça" que se tornou um clássico da literatura, Lafargue, ateu e marxista, já denunciava a luta contra os feriados como uma conspiração da burguesia para acabar com o descanso dos trabalhadores.

" No Antigo Regime, as leis da Igreja garantiam ao trabalhador 90 dias de descanso (52 domingos e 38 feriados), durante os quais era estritamente proibido trabalhar. Foi este o grande crime do catolicismo, a causa principal da irreligião da burguesia industrial e comerciante. Na Revolução [francesa], mal esta foi senhora da situação, aboliu os dias feriados e substituiu a semana de sete dias pela de dez, para que o povo não tivesse mais do que um dia de repouso em cada dez. Libertou os operários do jugo da Igreja para melhor os submeter ao jugo do trabalho ". 

Na quinta-feira o Governo voltou à carga: quer acabar com o 5 de Outubro e o 1° de Dezembro, deixando à Igreja a eliminação de dois feriados religiosos.

Se o plano do Executivo for para a frente, Portugal tornar-se-á num dos países com menos feriados na Europa. Por agora ainda tem treze: mais um que a França e a Áustria mas menos três que a Suécia, que com 16 feriados ocupa o segundo lugar no ranking europeu, e nem por isso parece ser menos produtiva. A Estónia, campeã dos dias santos, tem 22. O Chipre e a Eslováquia têm 15. A Dinamarca e a Polónia têm 13, como nós. O Luxemburgo tem dez, mas goza-os mesmo quando calham no fim-de-semana. Portugal, depois da eliminação de quatro feriados, vai ficar com nove. Menos, só o Reino Unido, que tem oito.

São medidas que não atrasam nem adiantam a produtividade portuguesa, mas servem para encher os olhos da Alemanha, que também tem nove feriados, e tem sobretudo um apetite imperialista pela exploração dos chamados países periféricos. Que para quem não sabe, somos nós e os gregos. Como os senhores feudais, a chanceler alemã vem exigindo sucessivas corveias e tributos aos vassalos. O objectivo é claro e Merkel não o esconde: acabar com a soberania dos países mais pobres. "Austeridade" é o nome do jogo de sujeição cujas regras são ditadas pela toda-poderosa Alemanha. E se o fim dos feriados que assinalam a Implantação da República e a Restauração da Independência tem um valor "sobretudo simbólico", como admitia há pouco tempo Marques Mendes, a simbologia não é de bom augúrio para Portugal.

Manuel António Pina, prémio Camões em 2011 e um dos mais lúcidos cronistas portugueses, lembrava esta semana que a intenção do Governo de pôr fim ao feriado que recorda a Restauração da Independência "assume [neste contexto] uma involuntária carga simbólica". O símbolo da servidão, acrescento eu. Mudam-se os senhores, não mudam os vassalos...

O popular hino aos feriados e aos santos populares criado por Carlos Paião é que vai ter de mudar. Em vez de "Viva o Santo António, viva o São João! Viva o 10 de Junho e a Restauração!", vamos ter de cantar loas à recessão, que sempre rima. "Submissão" também não ficava mal, tirando um pequeno problema de métrica, para os ouvidos mais sensíveis. Mas a verdade é que por estes dias, ninguém tem muita vontade de cantar.

Paula Telo Alves, 01/02/2012
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Liberdade, universal ou privilégio 

Cuba tenta imobilizar o presente, porque não tem futuro. E os que mandam sabem-no, porque viram perecer, em 1991, o império soviético, gerado para a eternidade, como o anunciara Lenine, o parteiro. E ainda era a doutrina oficial, no reino do camarada Brejnev, em meados dos anos 70, quando o tratado de Helsínquia lhe deu metade do mundo. Um Tordesillas sem Papa, quando já não havia mares a descobrir.

Desintegrou-se, quando o gigantesco organismo começou a respirar bolhas de oxigénio que se infiltraram nos subterrâneos da ex-Checoslováquia, nos estaleiros navais de Gdansk e no coração do último czar vermelho, Mikhaïl Gorbatchev. A hibernação induzida acabou. O maior colapso do século passado ainda o guardamos bem à entrada das nossas memórias. A liberdade respira em muitos corações cubanos, e cada vez mais, porque o estado comatoso do país pode matar alguns dissidentes mas não mata a esperança. A esperança é uma ave da eternidade que recolhe o último respiro do homem livre, condenado à morte, e o deposita nas lágrimas dos que choram e se revoltam. E são cada vez mais multidão.

Wilman Villar Mendoza morreu em Cuba, na semana passada, depois de 50 dias de greve de fome. Por causa da liberdade. Era prisioneiro político, pai de duas meninas, tinha 31 anos. Dois anos depois da morte de Orlando Zapata, no termo de uma fome mais longa. O regime, então, abriu as portas do cárcere a 130 prisioneiros, deixando-os, como a todos os cubanos, no estado nacional, comatoso, de liberdade filtrada.

O dia 16 de Janeiro viu centenas de mulheres a cantar e a bailar, nas ruas de Jerusalém. Não era uma oferta lúdica, como os “abraços gratuitos”, “câlins gratuits”, “free hugs”, do Natal na “place d'Armes”. Era um protesto contra os rabinos ultra-ortodoxos de Israel, um alarme para o país e para todo o mundo. Como os seus homólogos, do outro lado da fronteira, os imãs radicais, tão fanáticos como eles, programam racionar as doses de liberdade de que as mulheres podem dispor. Os ultras, todos iguais.

Há organismos de fiscalização em certas democracias, como a ASAE, em Portugal, que impedem de viver, ou de viver onde e como querem, cidadãos pobres que têm consumido o pão por eles amanhado, velho de gerações de gente dura. Pão bom, pão que dá gosto comer e dá saúde! Pão que a ASAE deita no lixo, porque não obedece a determinadas regras de higiene, redigidas por nutricionistas, pagos à página, para cumprir normas concebidas nos gabinetes de Bruxelas por teóricos diplomados que não sabem cultivar uma horta ou um jardim. A ditadura da lei é o fim da liberdade. O contrário aprendemos: “O homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem”.

Pôr entraves em nome de Deus é presumir-se deus. Quem julga prender Deus acaba por ficar prisioneiro do demónio.

“Freedom is the freedom to say that two plus two make four. If that is granted, all else follows”. Assim escreveu George Orwell, com soberba displicência, no seu profético “Nineteen Eighty-Four”, de1949. Vá lá alguém dizer em Cuba ou na Coreia do Norte que o comunismo morreu!

Libertar a palavra! É urgente, em todas as áreas do discurso humano: social, político, religioso. Há muitos cristãos que elevam cada vez nais a voz, na Alemanha, na Áustria, na França, na Austrália, nas Américas, acusando a centralização romana de amordaçar grandes teólogos e Igrejas locais.

“Croire quand même”, do teólogo Joseph Moingt, está a ser um sucesso comparável ao “Indignez-vous”, de Stéphane Hessel. O autor é jesuíta, também de provecta idade, 96 anos. Mas não recomenda a “indignação” aos crentes desiludidos com a Igreja. Diz-lhes: “Restez!” De futuro, e na fidelidade ao Vaticano II, os teólogos sejam “convocados ao meio dos fiéis para esclarecer os seus problemas”. “Deve a Igreja repensar toda a fé cristã para dizer 'Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem' na linguagem de hoje e em continuidade com a Tradição”. Porque, continua ele, a Igreja não vencerá esta crise com respostas dogmáticas, mas deixando que os teólogos desbravem caminhos novos, sem medo da excomunhão.

Liberdade que não seja universal, para todos, é uma condecoração, um privilégio arrogante.

Pe Belmiro Narino, 25/01/2012
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Manifesto político do cristão 

Nuno Álvares Pereira e Joana d'Arc são figuras magnas da história de Portugal e da França. Não apenas porque se bateram, arriscando a vida contra os invasores, na charneira dos séculos XIV e XV, mas porque o fizeram obedecendo a uma voz interior, da sua consciência cristã. E foi esta presença espiritual que os cronistas nos legaram, no estilo hagiográfico, ao referirem que ambos, no mais aceso da batalha, se retiraram alguns momentos para rezar. Dois heróis, um adulto e uma donzela, patriotas que se empenharam ao extremo das suas forças, como divinamente inspirados. Não é ocasião de incriminar espanhóis e ingleses, porque a balança da guerra justa não é visível em todos os conflitos...

Mas quer dizer que existe, em cada cristão, um elo inquebrável entre a fé e a vida. Não há questões humanas fora da esfera cristã. Uma pessoa de fé é profundamente inserida no mundo da sua época, numa perfeita articulação dos dois mandamentos maiores: amarás a Deus, amarás ao próximo.

Todo o cristão deve seguir este imperativo, a que é insensível o capitalismo, como o foi o comunismo. Com o comunismo falido e o capitalismo em risco de naufragar nas suas próprias águas, ou de se fagocitar vorazmente, vale a pena tentar a Doutrina Social da Igreja, também proposta pelo Arcebispo de Cantuária, na visão original anglicana. Na sua mensagem de Natal, Rowan Williams entrou ousadamente na coutada da política, apenas com o salvo-conduto do catecismo oficial, “Book of Common Prayer”. Propôs um exame de consciência a toda a sociedade, à luz dos princípios cristãos “oficialmente” aceites: “Ligar as nossas obrigações para com Deus e de uns para com os outros, num denso entretecer de amor e dever vividos com alegria”. “Os que aboliram a escravatura e o trabalho infantil, fizeram-no porque tinham aprendido neste livro e na Bíblia a honrar a Deus e os filhos de Deus”, prossegue. E conclui, lembrando que “se rasgaram os laços, se desgastou e perdeu a confiança”, por culpa tanto de governos anteriores como do actual.

Esta incriminação é devida, mais ainda, aos governos que esterilizaram a esperança em Portugal, obrigando o futuro a emigrar. Cameron e Coelho pregam que todos devem apertar o cinto, mas depois isentam as lojas dos argentários sob o pretexto de que “greed is good”, porque gerador de riqueza. E não vale a pena discursar sobre um “capitalismo mais moral” a gente que ignora deontologia ou ética, como, por ex., o sr. Catroga, que vai juntar um ordenado de mais de 600 mil euros anuais a outro tanto ou mais que já aufere de anteriores cometimentos, e que não vê que haja “conflito ético”. Foi o que disse na sublime TV que o (des)governo serve aos emigrantes, no português clássico que sói usar-se: “Posso poder” ver que não há incompatibilidade. Onde vive esse sublime extra-terrestre? Não é no país da UE mais estragado por sucessivas incompetências de mandantes e mandatários? O país de ricos cada vez mais obscenamente, criminosamente ricos, nalguns casos e em muitos por apurar, e de pobres cada vez mais pobres, porque só eles pagam impostos?

“Greed” é ganância, gula, avidez. Esses senhores que devem ter recebido uma educação cristã, ou humanista, não aprenderam nunca as quatro virtudes aristotélicas de sobrevivência social, prudência, justiça, fortaleza e temperança? Se não são bons cristãos, também são maus maçónicos, porque a maçonaria não é tribal. Ou talvez seja nalgumas lojas, de obediência errática ou mafiosa.

O Luxemburgo é um país independente há muito menos tempo do que Portugal ou a Espanha. E mais marcado foi pelo feudalismo. Mas não é compatível, com o clima social da gente que por aqui vive e manda, a “refeudalização” do sistema tributário. Antigamente eram os latifúndios das ordens religioso-militares e a fidalguia. Hoje, são as grandes corporações que invadiram, sem misericórdia, todas as redes disponíveis da globalização.

Ainda antes do nascimento de Cristo, Santa Maria, sua Mãe, deixou-nos um manifesto político com divina assinatura: “Mostrou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias”. Ser cristão é ser político, como São Nuno Álvares Pereira, Santa Joana d'Arc, Robert Schuman e todos os que pagam impostos. Evadir-se é roubar, como diz Clint Eastwood, no seu famoso filme de 2008, “El Gran Torino”, um velho Ford de 1972.

Pe Belmiro Narino, 18/01/2012
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Bom Ano 

2012 não se augura muito bom. Antes pelo contrário. Nasceu embrulhado em maus lençóis, de contas, políticas e pessoas erradas. A julgar pelos boletins de saúde das agências de rating , será pior que o anterior, e melhor que o seguinte. São estas as notícias correntes, de que vamos dar alguns exemplos. Para os evitar, para continuarmos livres, que só os livres, os peixes livres, nadam contra a corrente.

Coelho, o antigo pupilo da Juventude social-democrata, a mesma escola de clientelismo frequentada, com sucesso, pelo José Sousa, também conhecido por Sócrates, que lhe passou o poder, disse que não não iria contratar “boys”, isto é, parceiros, afilhados, amigos e outros cunhados, para o Governo. Miguel Relvas e Marco António Costa, dois barões da loja partidária (que não se sabe mais onde começa a maçonaria e acaba o partido!) foram os primeiros a ser contratados. Logo a seguir veio uma legião de fiéis apoiantes, alguns mais ávidos e incompetentes do que outros, mas todos bem cunhados, isto é, filhos da cunha.

Prometeu outrossim cortar as despesas, a começar pelo Governo. Reduziu estrondosamente o número de ministros de 16 para 11. Mas logo, de mansinho, aumentou os secretários de Estado, de 25 para 35. Afinal, mais despesa.

Como se chama quem diz uma coisa e faz outra? Se for trabalhador, aldrabão; se não for, político (pelo menos nalguns países).

Para a Taça da Europa, que decorrerá na Polónia e na Ucrânia, no próximo Verão, a selecção espanhola vai hospedar-se no hotel Mistral, de Gniewino, a pagar 4.700 euros por noite. Jogadores, técnicos, membros directivos, 40 pessoas. A Dinamarca é o segundo país mais parcimonioso, mais sensato. Temperança igual a bom senso.

No topo dos mais esbanjadores, está Portugal, que pagará 33.174 euros por noite, num hotel de Opalenica. Sete vezes mais do que a Espanha! Não admira que os portugueses andem a incendiar ou a deixar às moscas os faraónicos estádios, concebidos pelas irmãs engenheira Estultícia e arquitecta Corrupção, e construídos pelos abundantes cunhados. Logo a seguir vem a Rússia, outro país campeão da corrupção e da cunha, com 30.400 euros, num hotel de Varsóvia.

Quem diz que somos um país pobre? De resto, já sabíamos que a Espanha gasta, com a casa real hereditária, menos de nove milhões de Euros por ano, e Portugal, com a casa presidencial e presidenciais lares da terceira idade, mais de 18 milhões...

Em 1964, a censura não deixou publicar um artigo no “Jornal do Fundão” porque falava do despovoamento da Beira interior, devido à emigração (e à guerra do ultramar!). Em 2011, emigraram mais de cem mil portugueses, tantos como em 1964, entre os quais jovens com boa formação universitária e empresas respeitadas e produtivas, como a Jerónimo Martins. Já não são só as aldeias a desertar, também as cidades e os empresários. Como explicar isto, srs. governantes, se já não há guerra do ultramar? Talvez para seguir os conselhos de Vossas Senhorias, não venham alheios merecer as poltronas por Vós reservadas às glúteas convexidades dos cunhados! Isto ao menos podemos dizer, que já não há censura. Antes era proibido.

Mas podíamos andar tranquilos por todos os caminhos, deixar a chave na porta, o carro aberto. Só não podíamos dizer mal do presidente, como me recorda um velho amigo numa recente mensagem.

Podíamos ser germanófilos ou anglófilos, comer todos os petiscos sem ASAE, ir a qualquer bar, em qualquer bairro da cidade, de carro, a pé ou de eléctrico, sem perigo de assalto, agressão ou sequestro. Só não podíamos dizer mal do presidente.

Mas hoje podemos dizer mal do presidente. E nem tudo é mal. Temos a UE, e o seu filho primogénito, o Euro, que ainda está à espera que lhe dêem um presente, pelo décimo aniversário! E temos um ano novo. Novo ano, tempo de esperança. Há sempre alguma coisa que podemos esperar, pelo menos de nós mesmos, se escolhermos a verdade contra o fingimento, o homem contra o “ego”, a liberdade contra a corrente. E assim, mesmo sem podermos acrescentar dias ao ano, podemos acrescentar vida aos dias. Bom Ano!

Pe Belmiro Narino, 11.01.2012
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A década de euro, e agora?


Há exactamente 10 anos guardei os francos luxemburgueses, franceses, belgas, os marcos, as pesetas e os escudos numa gaveta, saí eufórico e fui atestar o meu carro com euros pela primeira vez. O gasóleo custava então 0,7 euros. Dez anos volvidos, vale a pena eu continuar a ser um euro-optimista?

Quando hoje criticamos o euro pela subida dos preços, um aumento atestado por todos os estudos feitos sobre o assunto, esquecemos o positivo que a moeda única trouxe. Nunca mais tivemos que transportar meia-dúzia de porta-moedas com diferentes divisas ao viajar pela Europa, nem nunca mais fomos "roubados" no câmbio. Câmbio, aí está uma palavra que não digo há muito... Fazer parte da união económica e monetária protegeu-nos também da onda de choque da crise financeira de 2008, que chegou até nós, sim, mas muito mais tarde e já menos devastadora. Pertencermos ao euro permitiu também manter as taxas de juro baixas até 2010 e 2011, em certos países da zona euro, e isto apesar da crise.

Não esqueçamos também o prestígio que a nossa moeda comum adquiriu nos mercados internacionais, graças ao seu equilíbrio e ao peso político da Europa. Hoje o euro está ligado a 42 países do mundo: os 17 países da zona euro; os seis estados europeus não-comunitários que adoptaram o euro como moeda principal ou segunda moeda nacional; e 19 países africanos (entre eles, Cabo Verde) e do Pacífico, que ligaram a sua moeda ao euro. O sucesso do euro fez até com que alguns países do Golfo Pérsico imaginassem criar uma moeda comum, que os "libertasse" do dólar.

Mas, passada a década de e(o)uro dos anos dois mil, a nossa moeda enfrenta agora, no início dos anos dez, uma grande crise, a "Grande Recessão", como lhe chamam já alguns economistas. A forma como vai ser resolvida esta crise da dívida, nos próximos meses e anos, vai reforçar ou fragilizar irremediavelmente a UE. O presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, bem o clama: "A crise não é do euro, é de países como Portugal e Grécia". E é precisamente para esse problema que é necessário encontrar uma solução.

Há os que são apologistas da "solução islandesa". A Islândia, cujo Estado faliu em 2009 devido à crise internacional, conseguiu reerguer-se, após três anos de rigor. Num momento em que a UE enfrenta 2012 ainda em recessão, a pequena ilha nórdica aponta para um crescimento económico de 3 %. Qual é o milagre de Reykjavik? O Estado islandês decidiu não salvar os bancos em crise, exactamente o contrário do que fez a UE. Melhor, o Estado islandês decidiu não salvar os accionistas, mas proteger os clientes.

Mas fazer isso a nível europeu teria um efeito de contágio entre bancos que só contribuiria para alastrar ainda mais a crise.

Para escapar à crise na zona euro, há países que já equacionaram abandonar a moeda única e voltar às suas antigas moedas fortes nacionais, para se protegerem das turbulências dentro da eurozona. Outros falam em expulsar do grupo os "maus alunos", como Atenas e Lisboa, e os que se seguirem. É a proposta de Merkozy.

Economistas como Barry Eichengreen ("The Breakup of the Euro Area", 2007), da Universidade de Berkeley, ou Michel Dévoluy ("L’euro est-il un échec?", 2011), da Universidade de Estrasburgo, analisam as consequências de uma tal medida e afirmam que a saída forçada do euro teria consequências nefastas para um estado-membro, mas também para a UE.

Quer fosse a Grécia, Portugal ou outro país, regressar, neste contexto de crise, à moeda nacional seria desastroso, afirmam. Isso levaria a desvalorizar a moeda, o que provocaria viver uma corrida desenfreada aos bancos por parte dos clientes, que não quereriam perder poder de compra, e, por consequente, iss poderia conduzir à fragilização ou mesmo à falência de alguns bancos. Acrescente-se a isso uma forte inflação, fuga dos investidores, aumento das taxas de juro. O regresso à divisa nacional custaria também extremamente caro no fabrico da nova moeda fiduciária, na sua colocação em circulação, da reconversão de todo o sistema monetário e financeiro, e na redefinição da política monetária nacional. Recordemos o tempo e o dinheiro que custou a introdução do euro. A conversão de todos os preços e salários, só por si, poderia levar a tensões sociais ainda mais graves do que as que o país enfrenta hoje. E o impulso nacional pretendido não aconteceria.

Nas relações exteriores, entre o estado "expulso" da zona euro e os que o teriam deixado à sua sorte, poderiam mesmo nascer tensões e novos nacionalismos, desaparecidos nos séc. XIX e XX. O país expulso poderia mostrar-se cada vez mais reticente também em aceitar o controlo de Bruxelas e, in fine , poderia até decidir sair da UE.

É verdade que hoje há estados-membros dentro da UE e fora do euro, mas são-no por opção. A saída forçada ou voluntária do euro seria profundamente negativa para a imagem da moeda única e da UE. A força e o prestígio da UE e da sua divisa vêm-lhe sobretudo da imagem de equilíbrio económico, geopolítico e de ajuda mútua que os seus estados-membros devem uns aos outros.

Para Dévoluy pode vir a ser decidida uma divisão da zona euro em dois grupos. Por um lado, estados que optassem por uma governância económica comum e mais federalismo. Por outro, estados que regressassem às suas moedas nacionais. Mas esta Europa a duas velocidades, decidida em época de crise, poderia ser vista como a tentativa de salvar os bons alunos e de ostracizar os maus, o que descredibilizaria a UE.

Dévoluy considera que uma das soluções à crise do euro é mais federalismo, mas isso implica um novo paradigma político para a UE, mais do que propriamente económico. Dévoluy preconiza a troca da doutrina neoliberal da UE por uma "ordoliberal", isto é, uma doutrina económica baseada na estabilidade dos preços e na "virtude orçamental". Ou seja, liberal, mas com ordem, com regras, que evitem ou corrijam as derivas dos mercados. Foi esta "terceira via", a meio caminho entre o socialismo e o capitalismo, que permitiu "o milagre económico alemão" no pós-Segunda Guerra Mundial.

Mas a actual posição do Reino Unido, que bloqueou a possibilidade de uma maior governância económica comum, parece ter deixado o euro num impasse.

Tanto Eichengreen como Dévoluy alertam: é preciso salvar o euro, porque o seu fim provocaria a maior de todas as crises na Europa, e até conduzir ao desmembramento da própria UE.

José Luís Correia
04/01/2012
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Auto de Natal africano 

Um presépio vivo, representado por crianças de uma escola, num bairro negro, algures, na África do Sul. Era exactamente para alegrar os meninos e suas famílias, na véspera do Natal.

O velho pároco, exausto, confissões todo o dia, preparação do presépio e mais tarde ainda a Missa da Meia-Noite, sentiu-se de repente interessado quando, depois da saída dos Reis Magos, que deixaram os presentes, oiro, incenso e mirra, dão entrada no estábulo três personagens estranhas. Um homem coberto de andrajos e apoiado a um bordão que mal o ajudava a arrastar o pé coxinho; o segundo, apenas com uma faixa rota do que foram uns calções, e com os punhos e tornozelos agrilhoados; o terceiro, o mais extravagante, com o rosto pintado de branco, uma velha peruca cinzenta mal ajeitada na cabeça, e uma camisa africana.

À medida que se iam aproximando, um coro de homens e mulheres bradava: "Fecha a porta, José, são ladrões e vagabundos, vêm para roubar o que tendes". José replicou: "Todos têm direito a este menino – os pobres, os ricos, os infelizes, os cobardes, os ladrões... Não podemos guardá-lo só para nós. Deixai-os entrar. O menino é de todos".

Os homens entraram e quedaram, estupefactos, de olhos presos no menino. José pegou nos presentes dos Magos e quis oferecer-lhos. "És pobre. Toma este oiro – disse ao primeiro vagabundo – e compra com ele o que precisares. Nós não passaremos fome". E ao segundo disse: "Não sei como soltar-te essas cadeias. Mas com esta mirra podes curar as feridas que já tens nos braços e nas pernas." Finalmente, ao terceiro: "Tens o espírito doente. Andas atormentado, perdido. Não sei como curar-te. Mas leva este incenso, o seu aroma te dará alívio à alma atribulada".

Então, tomou a palavra o primeiro homem: "Não me dês o oiro. Quem me encontrasse com ele acusar-me-ia de ladrão. E infelizmente, dentro de alguns anos, este menino terminará também como um criminoso". Depois, o segundo: "Não me dês o unguento de mirra. O menino vai precisar dele. Um dia será acorrentado como eu". E o terceiro: "Ando perdido. Não sei quem sou, não tenho fé em nada e em ninguém. No mundo da minha cabeça cheia de medos, não há Deus. Mas deixa o menino ficar com o incenso. Também um dia ele se sentirá abandonado pelo Pai".

Enquanto Maria e José secavam as lágrimas, os três homens dirigiram-se ao recém-nascido: "Meu menino, tu não és da terra do oiro e dos perfumes. És do mundo da miséria e dos sofrimentos. Pertences ao nosso mundo. Deixa-nos partilhar contigo as nossas coisas".

O primeiro despiu os farrapos da sua velha camisa: "Dou-te estes andrajos meus. Um dia precisarás deles, quando rasgarem as tuas vestes e te fizerem caminhar desnudo". Tirando as cadeias, diz o segundo: "Ficam aqui a teu lado as minhas cadeias. Um dia vão prender-te, e então conhecerás a dor, a humilhação da humanidade". E o terceiro acrescentou: "Dou-te a minha depressão, a minha falta de fé. Já não suporto mais. Junta ao teu, o meu pesar".

Dito isto, saíram do estábulo e sumiram-se na noite. Mas a escuridão era diferente. Alguma coisa de divino acontecera, enquanto estavam perto do menino. As dores já não faziam sofrer e a cegueira passara. Era como se fosse uma epifania. E pela primeira vez olharam para o alto e viram as estrelas.

Todos os anos, o Advento nos recorda esta história transfiguradora, esta radical revelação de que o Mistério divino é agora carne da nossa carne. O místico que habita o mosteiro do nosso interior sabe que o mesmo vale para todo o mundo, porque, como nos diz o prólogo do Evangelho de João, tudo é o precioso corpo de Cristo.

Muitas vezes, no Natal, uma visão infantilizada nos impede de ver a real magia – na sua futura morte e ressurreição, o "Menino Jesus" é revelado no pleroma do Cristo Cósmico, que aplana os outeiros da injustiça e enche os vales de esperança. O coração, alma e salvador do amado e destroçado povo de Deus, o primogénito da Criação. E, como as intrusas personagens do Auto de Natal negro, também nós acreditamos que esta barafunda humana é a manjedoira da esperança, para nós e para o mundo (parafraseando a ousadia poética de Dan O'Leary, no seu livro "Unmasking God"). 

Pe Belmiro Narino
28/12/2011

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                   Sair da espiral da dívida 

A última cimeira europeia, a 27 membros, terminou num acordo, a 26. O comunicado final foi um cauteloso boletim de saúde. O Euro não está em coma, mas continua enfermo. A retirada do Reino Unido significa uma segunda rejeição do Euro. A primeira foi há duas décadas, quando não quis entrar no grupo da moeda única. Um+um não será um virar costas ao continente?

Jacques Delors admite agora (melhor seria ter prevenido na devida altura!) que o parto do Euro foi prematuro. Pelo que, o problema actual não é da moeda mas dos governos que não estavam preparados. E assim chegámos a esta situação paradoxal em democracia: mudar governos para mudar o Euro. Muda quem manda: os mercados. Mudam, metidos nos votos, como em Portugal e na Espanha, ou mesmo sem eleições, na Itália, onde conseguiram o que as urnas não garantiam: o fim da dolce vita do último imperador de circo.

Mandam e desmandam, os mercados, porque, enquanto as democracias votam a intervalos de vários anos, as agências de rating votam sem parar, a intervalos de segundos. Nem tudo é claro neste negócio. Hermético, por obra dos financeiros. Já as leis dos países são redigidas numa linguagem que supera o nível de literacia normal. Por isso, o cidadão tem de recorrer aos advogados, que fazem uma leitura que pode ser diferente da que será feita pelo juiz. Coisas deles, dos juristas. Parece que tudo é feito para que os passarões Isaltinos (a)Morais e os outros de Bancos e Universidades falidos e fundações de enganar a lei nunca vão para a gaiola. O jargão dos financeiros ainda é mais opaco. Só é entendido no círculo restrito dos executivos de cérebro asséptico, ideias de lucros sem limites e sem os "preconceitos" da coacção de uma moral qualquer. E de banqueiros, advogados e políticos colaboracionistas.

Mas há coisas que podemos entender. Os bancos alemães, tão cautelosos nas suas operações, antes de se apresentarem como vítimas das más contas dos países do Sul, os "Südlander", um eufemismo do acrónimo "PIGS", deveriam recordar que foi a sua ganância que os levou a comprar montes da dívida grega. Agora é impossível serem reembolsados segundo o valor inicial dos títulos.

A crise da eurozona poderia ter sido evitada, se os políticos que nos governaram e desgovernaram, neste último quarto de século, não tivessem sido míopes, amblíopes ou distraídos para não verem que não se podia dar a mesma nota a todos os concorrentes. Com a aprovação geral, mesmo aos impreparados, permitiu-se que os bancos tratassem as dívidas soberanas dos diferentes Estados como se fossem todos dignos de igual confiança. Foi sobretudo um gesto de boa vontade da parte dos alemães de então que se sentiam em dívida para com a Europa ensopada em sangue pelo esbirros nazis. E agradecidos, porque os aliados souberam reconhecer que haveria outros alemães, e por isso lhes "deram a liberdade no dia do seu enterro", como diria Mitterrand. Helmut Kohl apostou num Euro menino, abandonando o marco maduro e forte, porque o seu projecto, como o dos pais fundadores, era "uma Alemanha europeia" e não "uma Europa germânica".

Também Helmut Schimdt dizia, e continua a dizer, que "a Alemanha tem obrigações contraídas no tempo dos nazis que se projectam ao longo do séc. XXI e mesmo XXII. Os deveres são para com a Europa: a sua origem, Auschwitz, e o tempo de amortização, várias gerações".

Por isso acreditamos que a chanceler alemã, da terra dos antigos algozes, e o presidente francês, de uma das terras das vítimas, cuidarão a sério da cura do Euro. Em nome de toda a história europeia.

"Principiis obsta, sero medicina paratur". Melhor teria sido prevenir, há uma vintena de anos, quando se deu a aprovação geral aos que não a mereciam. O exame agora vai ser difícil. A primeira prova é a austeridade. Impõe medidas contraditórias: economias débeis, cada vez mais fracas para pagar a dívida mas com força suficiente para sair da espiral e criar riqueza.

É aqui que os políticos honestos e inteligentes (os que não se comportam como os Mugabes africanos, também de língua portuguesa!) deverão intervir. Todos juntos, melhor 27 que 26, para denunciar as leis dos mercados que não têm respeito nenhum por órfãos e viúvas, que se atribuem juros indecentes e transferem, minuto a minuto, da avidez de uns para a avidez de outros, somas de dinheiro muito superiores ao valor dos bens e serviços da economia real.

Que Nossa Senhora, cujas 12 estrelas flutuam sempre na bandeira da UE, ajude os nossos políticos a olhar para a gente e não só para os números.   

Padre Belmiro Narino
21/12/2011

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Descanso em tempos de crise


Ainquietude dói desde o fundo das entranhas. Não poupa nenhum recanto do ser humano. Espreita sempre o vazio do nosso horário vital.

O Génesis fala do trabalho da Criação e fala do repouso. Ao sétimo dia, Deus descansou, para que o homem, do mesmo modo, guarde o Sábado.

O homem não é mais à imagem de Deus pelo trabalho do que pelo paro, pelo descanso. O Sábado é doçura no coração da imagem de Deus, parafraseando o jesuíta Paul Beauchamp.

Mas se a inquietude é dor de todos os homens, é-o sobretudo dos que não têm casa nem amigos. Os que vivem na insegurança quotidiana e que não descalçam os sapatos, se os têm, para dormir.

O sono é a forma mais comum de repouso. Suspende o trabalho e o exterior. O sono é a libertação dos limites de fora e uma imersão no invisível, de dentro. É uma restauração. O álcool é o recurso do cobarde que tem medo de enfrentar a sua consciência na tortura das insónias ou no reflexo dos sonhos.

O homem não pode passar o tempo a espremer avidamente de cada hora o sumo do seu trabalho, precisa de intervalos de contemplação. Os cristãos aprendem a guardar, no turbilhão das tarefas, um espaço para Deus e fazer desse espaço o seu templo de repouso.

A grande festa, com que Deus celebra o obra da Criação, seis dias, é o repouso. Deus retira-se e deixa o homem a governar, mas à sua imagem, à sua maneira, guardando o sétimo dia para o repouso, no encontro com o Criador.

"Vinde a Mim todos os que estais cansados de carregar o peso do vosso fardo, e Eu vos darei descanso" (Mt 11,28). Sofremos a tentação de querer tornar útil o tempo de descanso, de preencher todos os momentos livres com actividades. Ora, o tempo "inútil", inactivo, é fundamental para viver: falar com a família, com o silêncio, e escutar. Tempo de "de-por" as armas e "re-por" tudo em ordem, na alma.

O relato do Decálogo, no Deuteronómio, liga a observância do Sábado à libertação da escravatura: "Lembra-te de que foste escravo na terra do Egipto, e o Senhor teu Deus te tirou de lá com mão forte e braço estendido. É por isso que o Senhor teu Deus te ordenou que guardasses o dia de Sábado" (Dt 5, 15). O Sábado, a Eucaristia Dominical para os cristãos, é um regresso a casa, o encontro em família, onde pertencemos. É a prova de que nenhum homem é escravo, nem do trabalho, nem de outro homem, nem mesmo de Deus. É a marca da dignidade do ser humano, que Deus chamou para convívio, no seu repouso. Um provérbio russo diz que o trabalho não faz o homem rico, mas curvado. O Domingo põe-nos de pé, direitos. Homo erectus.

A falta de confiança no futuro, nestes tempos de crise, alterou a ideia de trabalho. Já não é concebido como um contributo para o progresso da humanidade, mas apenas como o que se pode fazer da vida, agora. O futuro, que cuide de si! Para esta "Geração do agora", viver é jogar, é divertir-se.

Que pode significar o Sábado, para esta gente?

Em 203, foi lançado às feras, no Norte de África, um grupo de cristãos, entre os quais duas jovens, Perpétua e Felicidade. O seu crime: celebrarem o dia do Senhor. O Império Romano era, naquele tempo, um regime de "Big Brother". O Imperador tinha-se proclamado divino, por isso adorar a Deus era crime. Estes massacres, à boca das feras, no circo, constituíam a forma mais popular de diversão por todo o Império. Pouco antes de morrer, um dos companheiros contou, com alegria, uma visão que teve – os anjos de Deus a acolhê-los no Paraíso, com as palavras: "Ite et ludite”. Um convite ao jogo, ao descanso. E Santa Perpétua exclamou: "Sou mais feliz agora do que era no meu corpo". Os jogos do circo eram uma versão diabólica dos jogos do céu.

Antecipamos o gosto de Deus, no Domingo, não apenas por não trabalhar, mas pela qualidade dos momentos de mútua presença, revelando-nos diante de Deus e daqueles que amamos, em família, com amigos, nas celebrações religiosas, onde criamos laços de comunidade. A promessa do Sábado é de podermos descansar no olhar de Deus, o último olhar libertador, como diz Rowan Williams, o Arcebispo de Cantuária, um olhar sem rivalidade nem competição, mas de pura graça.


 

Pe Belmiro Narino
14/12/2011

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    Quo Vadis Europa? 

Sopram ventos perigosos sobre a Europa.

Parafraseando Nixon: "Isto vai piorar, antes de melhorar". Não é muito inteligente, mas ele acertou. Falava em 1969 e referia-se à guerra do Vietname, e efectivamente esta só viria a terminar seis anos depois, no que foi o maior desaire militar da história dos EUA.

Esperemos que o sonho europeu – esta União Europeia, que germinou na vontade e no espírito de grandes homens como Robert Schuman, Jean Monet, Paul Henri Spaak, que anos mais tarde outros da mesma estirpe, a exemplo de Jean-Claude Juncker, aceitaram como testemunho e ousaram levar ainda mais longe, essa União que actualmente reúne numa só comunidade mais de 500 milhões de europeus, facto por si já histórico e exemplar, porque conseguido por mútuo acordo entre 27 estados independentes –, não se transforme no maior desaire do velho continente.

A coisa vai por maus caminhos se deixarmos cegamente o casal Merkel-Sarkozy, que muitos já apelidam de "Merkozy", conduzir a Europa como pretendem. Os dois sonham-se nos novos Mitterand e Kohl, os pilares do novo eixo Paris-Berlim, e querem ditar à UE o caminho a seguir. Argumentando ser esta a resposta para fazer face à crise da dívida, em que estão mergulhados muitos países europeus e que ameaça outros, esse monstro "Merkozy" anunciou na segunda-feira que quer ver aprovado até Março um novo tratado europeu que risque do mapa o Tratado de Lisboa e inclua sanções automáticas para os países cujo défice ultrapasse 3 por cento do PIB. Um tratado a assinar a 27, com todos os estados-membros da União. Ou mesmo a 17, com os países da zona euro. O que é preciso é arranjar à pressa um tratado que reuna "os bons alunos" de um lado e "arrume" os maus do outro.

Na sexta-feira, Merkozy apresenta o projecto aos 27 estados-membros, em mais uma cimeira da última "chance" em Bruxelas. O Tratado Merkozy prevê também uma nova governância para a zona euro, no que é uma forma não-dissimulada de eliminar do tabuleiro político europeu um dos únicos governantes a ousar fazer-lhe frente: Jean-Claude Juncker, actual presidente do Eurogrupo. Muito cedo nesta crise do euro, em Dezembro de 2010, Juncker preconizou outra solução: a criação de títulos de dívida soberana europeus, os chamados "eurobonds". A ideia foi recusada em uníssono por Berlim e Paris, mas elogiada pelo Prémio Nobel da Economia, Paul Krugman. E há cada vez mais adeptos da ideia de Juncker. Uma das últimas é a deputada Ana Drago (Bloco de Esquerda).

Mas outras sombras pairam. Também na segunda-feira, a agência de notação financeira Standard and Poor’s ameaçou poder vir a baixar o rating da Alemanha, França, Holanda, Áustria, Finlândia e Luxemburgo, seis dos países considerados exemplares da zona euro. Até quando as instâncias internacionais vão deixar as agências de rating ditar os altos e baixos da economia? Até porque essas agências estão elas próprias submetidas a interesses económicos (dos accionistas e não só) que querem ver a balança pesar de um lado ou do outro.

E depois há jogadas mais sub-reptícias ainda neste tabuleiro. Atente-se no novo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, no novo primeiro-ministro italiano Mario Monti, e no novo primeiro-ministro grego, Lucas Papademos. Draghi foi vice-presidente do banco americano Goldman Sachs Europa, Monti foi conselheiro da mesma empresa e tinha como missão defender os interesses do grupo no seio da UE, e Papademos foi governador do Banco Central grego, e ajudou a Goldman Sachs a "maquilhar" as contas da Grécia. Agora aparece como "salvador" dos helénicos? São peões estrategicamente posicionados, mas com que propósito? Até porque nenhum deles foi eleito, recorde-se, mas nomeados pelos respectivos governos ou instâncias europeias. O que é a Goldman Sachs? Apenas um dos bancos mais poderosos do mundo e que, num momento em que podia tê-lo feito (como o Governo americano chegou a pedir), não ajudou a Lehman Brothers a safar-se da falência, o que arrastou a economia mundial para a crise financeira de 2008 e levou à consequente crise do euro.

É caso para perguntar: Quem beneficia com a crise?

Se não atentarmos agora, se não opinarmos, se não nos interessarmos, se não barafustarmos, se não nos opusermos, se não utilizarmos o privilégio que nos oferece esta tribuna que é a imprensa, mas também os movimentos civis que se têm alastrado, para nos indignarmos, para clamarmos o que acreditamos ser a Europa e o que queremos que esta se torne – dentro de algumas semanas será tarde demais e daqui a alguns anos olharemos para o início desta década como o princípio do fim. Mas já será tarde demais e a Europa um sonho que se esfumou nos ditames da alta finança internacional.

José Luís Correia (in 
CONTACTO, 07/11/2011) 
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Estação outonal

ÉOutono, no tempo e na gente. As novas não são boas. Muitas sibilas agoiram um Inverno glacial, uma catástrofe. A última greve geral, como outros descontentamentos dentro da União Europeia, parecem dar razão a uma sentença paradoxal de Ortega y Gasset, quando diz que as multidões esfomeadas começam por incendiar as padarias. Não é este o tipo de vandalismo praticado em Portugal, na França, na Itália e na Grã-Bretanha? Que nem tudo está bem, em Portugal, vê-se num texto de Eça de Queiroz, escrito em 1871, que tanto pode ser crónica como profecia: “A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos”. “O país perdeu a inteligência e a consciência moral”.

Muitos se sentem perdidos. É um estado propício para uma reflexão outonal. Novembro fala-nos de perdas, de carências. Todos os Santos e Fiéis Defuntos despertam memórias que nos abençoam e fazem doer ao mesmo tempo. Sentimos o vazio doloroso que nos ficou dos amores das nossas vidas, que já partiram.

Aprendemos também que amar não vai sem doer. Daniel O'Leary resume: “Se amares, podes ter a certeza de que vais sofrer; se não amares, ainda sofres mais”. Outro poeta irlandês abre, na dor, as portas da beatitude: “Loss is the sister of discovery”, a perda é a irmã da descoberta (John O'Donohue). Sem ela não há saída, embora sempre penosa.

O grande teólogo alemão e mártir do Nazismo, Dietrich Bonhoeffer, a propósito dos que a morte separou, ou a prisão, o desterro, leva-nos a descobrir uma nova dinâmica do espaço: “Nada pode preencher o vazio quando estamos apartados dos que amamos, e seria mal tentar fazê-lo, porque deixar a fenda aberta é que preserva o laço que nos une. Não faz sentido dizer que Deus a colmata. Ele conserva-a aberta, de modo que a comunhão com o outro continue viva mesmo à custa da dor”.

Outro grande teólogo faz uma leitura diversa: “Onde houver um espaço que ficou vazio, por causa da morte, da renúncia, da distância, e não for preenchido pelo barulho e as ilusões do mundo, Deus está aí".

Um e outro exprimem a mesma ideia: quem se quer bem nunca se perde. Quando a falta é sofrida pela morte de um íntimo familiar ou de uma pessoa amiga, essa dor pode ser a porta que nos vai abrindo para outra maneira de ficar reunidos. Uma nova intimidade se nos revela sem limites de tempo ou de espaço. Só quem se perde se encontra verdadeiramente, como disse Jesus.

As pessoas que se querem bem é como se estivessem envoltas no mesmo manto de bênçãos, como se o melhor de cada um se entrelaçasse com o melhor dos outros.

De coração despedaçado, com a morte de um ser querido, não podemos logo ver que uma graça divina se esconde naquela dor. Somos como uma semente metida na terra mas esperando na solidão. Passado tempo, no tempo devido, a dor abre-nos as portas a uma realidade reconfortante, o horizonte da ressurreição. Tudo é possível.

Este talento de transfigurar as coisas, dentro de nós, também vale para o mundo de fora, a sociedade. Não nos deixemos destroçar pelo desgoverno que nos afecta, pelas injustiças que nos revoltam, pelas mentiras que nos repetem, pela sem-vergonha que nos anoja.

Façamos da revolta a irmã da acção.

Neste princípio do Advento, encontramo-nos com o povo de Israel a chorar na Babilónia do degredo. Todos somos degredados, desterrados, agora, de uma segurança perdida, mas sempre, de projectos não alcançados. O profeta Isaías recorda-nos que Deus é o oleiro, e nós, a argila. A argila, observa S. Ireneu, tem de ser dócil para se deixar moldar pelo artista. Dura, teimosa, acaba por se estilhaçar.

Não será tempo de interrogarmos o nosso espírito de cidadãos sobre a importância que damos à verdade, à justiça, à solidariedade? Só muda o mundo quem se muda.

Padre Belmiro Narino
30.11.2011
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Os deslumbrados



Não há democracia sem democratas. Democratas são os cidadãos, cidadãos sem mais, sem roupagem ou tatuagem de nenhum adjectivo. Ora, o que acontece, é que andam por aí muitos cidadãos, mas com tantos e tão variados adjectivos que o pobre substantivo se encolhe, de apertado. Há socialistas, comunistas, liberais, verdes, vermelhos, pretos, azuis, republicanos, bloquistas, anarquistas. Tudo é adjectivo. O adjectivo é o deslumbramento do iniciado quando se lhe prometem as portas do poder.

Se é verdade que os partidos políticos que se têm alternado nas cadeiras do mando, e na partilha das suas benesses, como sejam bancos, empresas públicas e aparentadas, nestes 37 anos da segunda "dinastia" republicana, não herdaram muitos cidadãos do interregno salazarista (que se chamava Estado Novo), não é menos verdade que tão-pouco os produziram. Produziram, sim, clubes de sócios, e agências de emprego. São os clientes do negócio. Criaram também escolinhas, jardins de infância para os afilhados, a que deram o nome de Juventude Socialista, Social-democrata, etc., uma espécie de noviciado para aprender a ganhar votos. Estes, e outros que, sem passarem pela escola, têm os mesmos dotes (para as habilitações há muitas universidades interdependentes!) formam a cultura donde saem os deslumbrados.

Os deslumbrados entraram, pobres ou remediados, nas câmaras do poder, e de lá saem ricos. Muito ricos. De dinheiro e fazendas embrulhados em papel feito de suspeitas. Deviam cobrir-se de vergonha, rasgar todas as clâmides, estes que se serviram do governo em vez de servir o país. Guterres é considerado uma excepção.

Afirmou, há poucos dias, a ministra da Justiça que tem de haver justiça e acabar a impunidade. O que quer dizer, pelo menos, que vivemos num país onde abunda a impunidade e falta a justiça.

Será que o caso BPN vai ser a praça de touros onde se vão encontrar as manadas? Porque muita gente anda metida nisto, gente fina...

Duarte Lima é o elo mais fraco. Por ora, inocente até provas em contrário, foi apanhado num labirinto de negociatas, empréstimos, imobiliárias, especulação, depois de ser acusado de homicídio, no Brasil. Começam a aparecer os nomes de uns tantos, cujos haveres passaram de tostões a milhões, em jogadas políticas. Como as cerejas: uma puxa a outra.

Ninguém sabe onde isto vai parar. Foram muitos anos. O povo está como nunca, feito de pobres e muito pobres, e eles, os poucos, muito ricos.

Que o deslumbramento continua hereditário, nesta segunda "dinastia" republicana, vê-se por algumas nomeações feitas pelos actuais moradores de S. Bento e anexos: assessores e assessores, com direito aos subsídios que tiraram a todos os pobres.

Nem se dão conta de que estão a ofender todo o povo. E os graduados da AR, das casas "reais" dos ex-PR e do actual, o deslumbramento impede-os de ver que andam a envergonhar a democracia, com o fausto das suas cortes. Também aqui há uma excepção: Ramalho Eanes.

Na Espanha dos séculos XV e XVI houve um fenómeno parecido: "los alumbrados". Talvez de inspiração gnóstica, como opina Menéndez y Pelayo, representavam uma ameaça para a ordem pública, como era entendida pela Inquisição. Por isso a Inquisição os perseguiu, em primeiro lugar. Viviam uma espécie de misticismo amoral. Unidos a Deus nenhum mal que fizessem era pecado.

Os deslumbrados lusos servem-se da política, como os outros se serviam da mística, para alcançarem a impunidade. Quanto à Inquisição, podem ficar tranquilos, que não estamos na Espanha daquele tempo. Mas, se neste tempo houver justiça, como prometeu a sra. Ministra, a impunidade vai acabar. Para não acabar tudo mal, seria bom que os políticos em geral, e os deslumbrados em particular, se mostrassem na TV e nos jornais, na humilde atitude tão humana de pedir desculpa, admitindo, pelo menos, que se deixaram enganar. "Nobody is perfect". A democracia ficaria melhor, mais robusta.



Padre Belmiro Narino
23.11.2011



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Governos destes, para quê?


Neste tempo de crise, que afecta duramente muitas democracias europeias, devemos perguntar-nos para que servem os governos. A Bélgica, sem governo mais de um ano, apenas com uma administração para regular os assuntos correntes, acaba de mostrar que não servem para muito, e às vezes só atrapalham. Não se impuseram medidas de austeridade, e melhorou o nível económico.

Ao contrário, muitos países com governos chamados estáveis passaram de mal a pior. E com o estatuto de impunidade com que se dotaram, "berlusconizando" as leis ao jeito das suas pessoas e respectivas máfias de serviço, até os cidadãos já aceitam que os seus eleitos façam da política sinónimo de corrupção e de nada devam contas a ninguém. E se servem da impunidade para cobrir-se de bónus, acumular pensões vitalícias, toda a sorte de prebendas, apesar do desempenho nulo ou nefasto dos seus cargos. Não é o caso de Portugal?

A título de exemplo, circulam, pelo país ainda desperto, 15 nomes de membros dos partidos que fruem hoje de ordenados escandalosos, obscenos, perante a miséria colectiva. Isto não é apenas um caso de gatunagem moral, mas de antropofagia e vampirismo. A única coisa que têm em comum é uma passagem por um dos ministérios da "Res-pública" lusitana, cada vez mais privatizada. O primeiro da lista dos 15 ganhava, em 2003, na Galp, 680.360 euros; depois da travessia ministerial, encontramo-lo a ganhar, em 2009, no topo da EDP, 3.103.448 euros. Ao último, de 70.285 euros que ganhava como deputado, duas passagens pelo governo mereceram-lhe um aumento para 122.102 euros, como vogal da ESRE (sabem o que é?). Catarina Furtado só ganha 30.000 euros por mês, diz a “Focus”.

Como tudo tem de se pagar, os políticos que agora estão no governo, isto é, no segundo tempo do seu carreirismo, decidiram que quem paga é o povo. O povo que sofre os cortes, as dietas, as privações, o emagrecimento, receitados pela Troika.

Como sabem que a impunidade os abrigará também no termo do seu carreirismo, trataram já de acolher, nos bastidores do mando, um grupo de senhoritos e senhoritas, todos do PSD, que alcançarão a mesma beatitude vitalícia. A estes cargos, de adjuntos, secretários, assessores e outros "trabalhos forçados", chama Abílio Rogério "os poleiros". São só 73, uma listinha de "boys & girls" dos gabinetes ministeriais, que custam a módica soma de 3.056.829,58 euros . Quem paga é o povo. Mas que povo é este que não acorda? "Esta mascarada enorme/ com que o mundo nos aldraba/ dura enquanto o povo dorme/ quando ele acordar, acaba" (António Aleixo).

Aquele senhorito liliputiano, Alexandre Mestre de nome, secretário de Estado da Juventude e Desporto, que, falando do Brasil, aconselhou os tugas a sair da pátria "zona de conforto", deveria referir-se a estes meninos, e sobretudo aos dois do seu poleiro, Diogo Guia e Sónia Ferreira, respectivamente chefe e especialista do gabinete. E ele à frente, com a Catarina Furtado...

Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, escrevia, em 1802, em Washington, DC: "Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que o levantamento de exércitos. Se o povo americano alguma vez permitir que bancos privados controlem a emissão da sua moeda, primeiro pela inflação, e depois pela deflação, os bancos e as empresas que crescerem à roda dos bancos despojarão o povo de toda a propriedade até os filhos acordarem, sem abrigo, no continente que os seus pais conquistaram". Advinhou em cheio, há mais de 200 anos.

Esta situação de extrema gravidade, fruto da corrupção, incompetência, clientelismo, de sucessivos governos, penaliza todos os países onde não houve estadistas à altura. E agora se submetem, servilmente, ao governo alheio. É uma farsa de política moderna: a Branca de Neve, de seu nome Angela Merkel, e os sete anões, a saber, Sarkozy, Berlusconi, van Rompuy, Durão Barroso, Zapatero, Passos Coelho e Papandreu. Mas prestem atenção ao possível "cavalo de Tróia", Mario Draghi, que acaba de suceder a Trichet no Banco central europeu. Neste mundo sem regras, faz falta, sobretudo, a memória. Não esquecer que o anafado Draghi era o rosto e a voz, na Europa, do banco americano Goldman Sachs, que em 2002, aceitou o pedido do governo grego de então, para fazer uma operação plástica às contas públicas e aos números reais do défice.

Padre Belmiro Narino
09.11.2011



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Obras inacabadas


Dois acontecimentos ocorreram nos anos 60 e 70 do século passado, que rasgaram avenidas de esperança para muita gente: um, religioso, o Concílio Vaticano II, em Roma; o outro, político, o 25 de Abril, em Portugal. Mas ambos, cada um à sua maneira, estão longe dos almejos prometidos.

Ao anunciar o "Ano da Fé", que coincidirá com o quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio, em Outubro de 1962, o Papa Bento XVI insistiu no lema do seu pontificado – proclamação e descoberta. Proclamar a fé, evangelizar em palavras e obras; descobrir, nunca dar por concluída a exploração da floresta interminável da verdade, empreendida pelo eterno par de bandeirantes, a Razão e a Fé. Devidamente interpretado, o Vaticano II fornece os instrumentos necessários para a "nova evangelização em vista da transmissão da fé cristã".

É de todos reconhecida a notável influência dos documentos conciliares nas questões sociais, nas relações ecuménicas e, sobretudo, inter-religiosas. A "Declaração sobre a liberdade religiosa" marca uma verdadeira inversão de marcha, uma ruptura com o passado. Os Concílios não são Escritura Sagrada. Há coisas que ficam e coisas que passam. E esta dicotomia – continuidade, descontinuidade – é o fermento que vai transformando, aperfeiçoando, a consciência católica.

Mas foi no campo da teologia moral que se verificou a maior revolução do século.

Esta mudança dramática não se deve a nenhuma intervenção directa dos membros do Concílio, mas a teólogos que nele participaram e continuaram a fazer uma leitura simultânea da moral e dos sinais dos tempos. No espírito conciliar.

Os teólogos da moral, como foi Yves Congar, Bernard Häring, não se consideram mais como juízes ou árbitros do povo de Deus, mas como simples mestres, explicadores. Esta mudança de atitude, e de vocação, induz à substituição do argumento da autoridade pelo primado da consciência e da sua responsabilidade para racionar rectamente. Passou-se do tempo da obediência, pré-conciliar, ao tempo, pós-conciliar, da razão.

A teologia moral ocupava-se apenas do que era obrigatório, permitido ou interdito, sob pena de pecado. Era uma moral negativa, depressiva, que ignorava o mais importante, que é indicar o caminho para o melhor. Thomas Slater, já no início do século XX, chamava a esses tratados livros de "patologia moral". Livros que não serviam para "exaltar os altos ideais da virtude, apontar o caminho da perfeição... mas apenas para saber o que é pecaminoso".

Depois do Concílio, para saberem que autoridade tem uma determinada posição, os católicos já não se interrogam sobre “Quem disse?” mas sobre "Quais são as razões para a defender?" No fim de contas, é um regresso à patrística e a S. Tomás de Aquino, para quem a fonte da verdade é a recta razão, e não uma cátedra ou a pessoa que nela se senta.

Os moralistas que assim pensam, e são a maioria, mudaram de ideias porque souberam escutar o povo de Deus. Ouviram, por ex., o testemunho de casais sobre os seus problemas de consciência e a sua capacidade de raciocinar moralmente. E assim Josef Fuchs começou a escrever ensaios não sobre o que é bom ou mau, mas sobre como bem raciocinar e julgar, e, acima de tudo, sobre o primado da consciência e a responsabilidade pessoal de fazê-lo. Não lhe compete, afirma ele, dizer aos casados o que lhes é "permitido" para o controlo de natalidade, mas antes dizer-lhes que eles é que devem decidir, moralmente, sobre o planeamento familiar. "O nosso papel, depois do Vaticano II, tem sido ajudar os outros a pensar correctamente".

Mas nem em todos os domínios se foi tão longe. Para que o Concílio Vaticano II seja cumprido, torna-se necessário ainda convocar outro, a fim de reexaminar, a nova luz, velhos temas e, sobretudo, enfrentar os que então foram evitados.

Mais atrasado anda o 25 de Abril. O Arcebispo Desmond Tutu, por ocasião do seu aniversário natalício, no dia 7 de Outubro, acusou o actual governo de representar o povo sul-africano como o representava o "apartheid". Esqueceu-se de Mandela. "Putting Tu and tu together", também se pode concluir que não era este o Portugal que a revolução prometeu. Houve o PREC. Mas chegou a haver revolução? Pergunta-se quem já fez 80 anos.
Padre Belmiro Narino
26.10.2011


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Os políticos mataram a gramática


"Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento de caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se fala num país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa, citam-se a par a Grécia e Portugal". Assim escrevia Eça de Queiroz (EQ), em 1872. 139 anos depois, tudo na mesma, parado.

E atravessámos mais de um século de velocidades: comboio, automóveis, aviões. O homem foi à Lua e para lá. A mala-posta foi ultrapassada pelo telégrafo, o telefone, a rádio, a TV, a internet, os telemóveis.

Ainda no século XIX, o nosso fiel aliado britânico roubou-nos metade da África ("contra os bretões, marchar, marchar"!). Como a culpa é sempre dos outros, os republicanos acusaram a Monarquia e o Rei de não terem impedido. Começaram a urdir um plano para os matar: o Rei é assassinado em 1908, a Monarquia, agonizante, expira em 1910. E assim acabaram as dinastias, com D. Manuel II, e começa o rol dos Presidentes da República, com Manuel de Arriaga. Entretanto, Afonso Costa manda matar a Igreja. Mas, como os partidos republicanos já não tinham os monárquicos para inculpar, fazem a guerra uns aos outros, transformando o parlamento num campo de batalha. A esta vergonha parlamentar (melhor dito, para lamentar) veio pôr termo a revolução de 1917, comandada por Sidónio Pais. É aclamado pelo povo, e pelo povo eleito em 1918. Mas os partidos, despeitados, mancomunam-se de novo, como fariseus e herodianos contra Cristo, para matar o "Presidente-Rei" (como o apelidou e chorou Fernando Pessoa). Alvejaram-no a tiro, a 14 de Dezembro, na estação do Rossio. Morreu a esperança de muitos, como tinham morrido milhares de soldados lusos, numa guerra que não era nossa, mas do fiel aliado britânico. Foi a primeira Grande Guerra (1914-1918).

Como o parlamento nunca mais se interessou pela nação, a moeda se desvalorizava em espiral e a dívida não parava de aumentar, um general, Gomes da Costa, decide pôr a ordem no quartel e na rua. Manda prender a liberdade, que só servia para os partidos se insultarem. Entretanto, encontraram em Coimbra um homem que endireitou as contas públicas. Era uma espécie de eremita, o eremita de S. Bento, que fazia discursos patrióticos e outras coisas, tudo pela nação. Acendeu-se uma segunda guerra, maior que a primeira, mas o "cavaleiro-monge" escolheu ficar neutro, porque acreditava no Bandarra e no afroluso quinto império, de Vieira e Pessoa, depois da lenta agonia dos francos, anglos e germanos nesse conflito mundial. O pior é que faltava a liberdade, até para acender um isqueiro. Perderam-se umas léguas de terras indianas, mas o império continuava. E nada mais se foi, enquanto o mito de D. Henrique e D. Sebastião, o nosso Cid, encarnado naquele professor hipocondríaco, se aguentou na cadeira. Mas um dia caiu. Seis anos depois, um grupo de militares, fartos de defender a geografia e a história imperiais, fartos dos ventos que sopravam de Este e de Oeste com balas à mistura, despacharam para o Brasil o sucessor do eremita e anunciaram ao povo que tínhamos sido ilegítimos invasores das terras africanas que chamávamos de Províncias Ultramarinas. Foi a chamada revolução dos cravos, que deu ao povo a democracia, mas com tanta pressa que se esqueceu de fazer a revolução. Valeu-nos uma Europa que ainda cheirava aos aromas de igualdade, liberdade, fraternidade dos pais fundadores. Aderimos à União Europeia, que os nossos políticos de serviço começaram a ordenhar, como se fosse uma inesgotável vaca leiteira. A um deles até chamam agora o Silva das Vacas. Claro que não era assim. E quando começaram a chegar as facturas, os políticos de turno (eles são todos iguais, mas o mais igual é um bobo de madeira!) trataram de as meter debaixo da estrumeira das suas negociatas, pensando que, como enganavam o Zé Povinho, também enganariam os camaradas do resto da Europa. Mas aqui é que foi o problema. “Hoc opus hic labor est”, como aconteceu a Eneias quando quis sair do inferno. Portugal está no inferno da Europa. "A crise pior, sem cura".

E assim nos encontramos hoje como há 139 anos. O que prova que só há uma coisa que não mudou, a qualidade dos políticos que sempre se governaram (menos o eremita!), desgovernando a nação. Relendo EQ, a situação hoje é pior, porque, se os ministros de agora "são nulos para resolver crises", como eram em 1867, não se pode dizer que "ordinariamente são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção". “Não há ciência de governo nem ciência de organizar oposição” (EQ, 1867). Por isso, "esta crise me parece a pior, sem cura" (EQ, 1891).

139 anos depois, os nossos políticos de faxina não escrevem tão bem como os do tempo de EQ (basta ver como os textos de Cavaco Silva se parecem com os de Américo Tomás!) e discursam mal, porque o que dizem hoje nada tem a ver com o que ontem disseram. Os nossos insignes ministros, em nome da liberdade de expressão, resolveram abolir a gramática. Assim não se pode dizer que falam bem ou mal, falam. A certidão de óbito não demorou a ser lavrada. É o chamado aborto ortográfico.

Ora, "grammar is the ground of all", já dizia William Langland no séc. XIV. A gramática é o fundamento de tudo. Escrever sem gramática é viver em desgoverno. A gramática é que prepara e distingue os talentos. Sem regras de gramática, temos uma malta de batoteiros, medíocres, invejosos, cérebros reduzidos, que acomodam os largos presuntos nas cadeiras do poder. São estes diplomados de fim de semana e de novas oportunidades, que dizem "interviram", "hadem", "cidadões e cidadães", que compõem o demoscópio de Portugal.

Mataram a monarquia: os republicanos ainda se podiam compreender; mataram a religião: os ateus também se entendem; mataram os partidos: os indivíduos ainda dialogam; por fim, mataram a gramática: e agora é que já ninguém se entende. Valha-nos Sá de Miranda, Camões, Bocage, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão. E que os seus ectoplasmas acompanhem a ministerial equipa afásica e amblíope que vai enfrentar o eixo Merkozy!
Padre Belmiro Narino
19.10.2011

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Como sair da Crise

Embora as últimas notícias, referentes ao modo como os governos europeus estão enfrentando os problemas das dívidas soberanas, sejam mais tranquilizantes, e se vá percebendo a audácia de um pouco mais de solidariedade para a estabilização das economias mais débeis, como já não é apenas o caso da Grécia, mas de Portugal, da Irlanda, da Espanha e da Itália, o futuro é sombrio, a crise continua. Se é verdade que os governos devem diminuir a dívida, também é verdade que devem estar atentos à maneira como fazem os cortes. Que sejam intervenções cirúrgicas ou medidas dietéticas para bem da saúde social.

Mas é nestes momentos de crise que nos damos conta de que os especialistas do dinheiro vivem num mundo impermeável à ética e à razão. Alguns especuladores, da City e de Wall Street, até admitem desejar tempos de recessão económica, de miséria para os outros, de fortuna para eles. Respectivamente 99 % e 1 %, nas contas dos jovens que protestam em Nova Iorque.

Há um vazio moral no mundo do negócio e da finança. É a lei do mercado. Um conhecido jornalista britânico, Clifford Longley, chama-lhe "Econosaurus Rex" : feio e gordo como um dinossauro, refastela-se impunemente da pilhagem global, sem respeito de fronteiras. Também se pode comparar a um "Big Brother" sem rosto, que se nos mostra nas máscaras de entidades económicas e nos fala pela voz de governos submissos. Os mercados paralisaram a democracia. Os governos eleitos pelo povo abdicaram do poder de decisão a favor deste monstro selvagem, que exige, agora, dos gregos, mais tarde, de outros, garantias impossíveis e contraditórias.

O capitalismo abriu a milhões de especuladores oportunidades de compra e venda, instantâneas, impossíveis de realizar num mundo de economias planeadas. Triliões de dólares passam de mão, numa jogada da bolsa, uma troca virtual que vai enriquecendo cada vez mais os mais ricos. O capitalismo julgou-se igual à liberdade. Na ausência de chefes políticos com a coragem de lhe impor leis, o capitalismo sem freio, sem consciência, produziu exactamente o contrário: a perda da liberdade para a maior parte (99 %), vítimas da dívida e do desemprego.

Mas à ganância de alguns políticos, que manipulam a economia para ganhar eleições, ou que são cúmplices das "leis do mercado", junta-se também a ignorância lamentável de tantos outros. Não falamos só de ignorância linguística, como aquele famoso "dequeísmo" de Pinto da Costa ou os "hadem" da AR, mas a ignorância das normas elementares da economia, que levou alguns dos nossos governantes, como o que ocupa agora o lugar de PR, a investir em múmias de cimento e alcatrão o que deveria ter sido aplicado à construção das infra-estruturas necessárias para gerar riqueza duradoura. A melhor maneira de vencer a crise é preveni-la.

Por outras palavras, temos tido Epimeteus a governar a maior parte dos 27 Estados da UE, políticos de visão curta, incapazes de enxergar para além dos muros do seu jardim nacionalista. Ora, a Europa, como foi sonhada pelos pais fundadores, homens de vistas largas, que alcançavam para além da crise, é obra de Prometeu.

Todos os nossos governantes deviam ler a certidão de nascimento desta Europa. Os pais deram-lhe um nome – solidariedade; fixaram-lhe um destino – união política. Se o soubessem os actuais governantes, a crise já estava debelada: as dívidas nacionais transformadas em dívida comum europeia, a união a ser mais que monetária. A operação não gastaria dinheiro em viagens, assembleias, comissões. Seria apenas um mecanismo de solidariedade.

Falta-nos um Héracles para libertar o sonho. Espero que alguém virá, com a audácia de não se vergar ao que "os mercados pensam", porque os mercados não pensam nada. Quem pensa é um grupo de especuladores, que perderam os sentimentos diante dos números.

Os jovens manifestantes da "Liberty Square" em Nova Iorque, gritando "Occupy Wall Street", admitem que os mercadores da bolsa estão ainda a ganhar, mas não será por muito tempo. Eles não são contra o capitalismo ou contra os ricos, mas contra a injustiça, os abusos, a corrupção. Juntemo-nos a eles em toda a parte, para acabar com a tirania do "Econosaurus Rex", que só ditará as regras enquanto não houver chefes políticos com a coragem de dizer: BASTA.

Padre Belmiro Narino
12.10.2011

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Às urnas, cidadãos!

É a hora! A chamada às urnas representa a hora e o local certos para nos exprimirmos cívica e politicamente enquanto cidadãos de pleno direito deste país que nos acolhe, quer tenhamos já aqui nascido ou chegado à procura de uma vida melhor.


2- A nossa condição de cidadãos deste país vem acompanhada de direitos e deveres. E um desses deveres – há quem lhe chame direito –, é votar. É um dever quase tão inelutável como pagar impostos. A estes últimos ninguém escapa. No Luxemburgo, há os que tentam escapar ao dever do voto e os que se esforçam para que o direito do voto escape a outros. O voto é obrigatório e os luxemburgueses estão automaticamente inscritos para votar.

Mas para um estrangeiro as coisas são diferentes: para participar nas eleições comunais (nas legislativas apenas os nacionais podem participar), um estrangeiro deve inscrever-se nos cadernos eleitorais, depois de observar um tempo de residência exigido, cinco anos.

Há os que defendem a inscrição automática dos estrangeiros nas listas eleitorais, outros retorquem que a inscrição deve ser voluntária e representar um gesto consciente e assumido pela integração (como se alguém esperasse pelo voto para se integrar e como se o voto não fosse já uma manifestação de uma integração avançada). Outros não querem ouvir falar na inscrição automática enquanto o voto for obrigatório, no que são apoiados por muitos luxemburgueses, que tentam há anos acabar com este dever compulsório. Há até quem apele às directivas europeias, que estipulam que as condições de inscrição nos cadernos eleitorais para as eleições municipais devem ser as mesmas para cidadãos nacionais e residentes comunitários.

Domingo, haverá uns e outros. Haverá ainda os que vão exercer o seu dever cívico pela primeira vez na sua vida, os que vão votar contra, os que vão votar a favor, os que votam porque são militantes fervorosos, os que votam de forma apartidária, os que votam nos amigos, os que votam por hábito, os que votam por ócio, os que votam por consciência política ou social, os que vão para abster-se, porque também esse é um direito. E haverá até os que nem vão aparecer, e que, como sempre, não pagarão a coima prevista pela lei nestes casos, porque as autoridades nunca – até à data– lançaram essa caça às bruxas.


3 - Há cerca de 100 mil portugueses no Luxemburgo, mas apenas pouco mais de 12 mil (12 %!) estão inscritos para votar. Porque não estão mais inscritos? Por muitas razões, algumas atrás mencionadas. Outros porque, distraídos ou ocupados, deixaram passar o prazo da inscrição. Outros ainda porque não se sentiram sensibilizados pela campanha invisível e sem fundos do Ministério da Integração.

Mas se calhar não foi por acaso. Talvez até nem houvesse tanta vontade política assim que mais estrangeiros se inscrevessem, não vá a balança democrática, há anos deficitária, de repente pecar por excesso. (Excesso democrático?, isso existe?).

Grita-se bem baixinho certos direitos para que as massas trabalhadoras ocupadas na sua tarefa barulhenta de ganhar a vida não se apoderem de privilégios reivindicativos, é? Gostava que me mostrassem que me engano.

Por estas e muitas mais, reitero: é a hora! Aos que se inscreveram, aos que votam, é a hora de mostrarmos que os portugueses e os lusófonos em geral têm e podem ter ainda mais peso político, que são um eleitorado que não pode ser negligenciado. Porque só assim, como eleitores, com o poder do voto, que conduz à eleição ou à sanção, os nossos problemas, preocupações, exigências, reivindicações, aspirações, direitos, serão tomados em conta pelos partidos no poder e pelos que lá ambicionam chegar.


4- Estas eleições vão servir ainda para um espectador de fora poder apreciar a curiosa "excepção luxemburguesa" dos jornalistas-políticos. Não estou a falar dos jornalistas políticos (sem hífen), esses analisam a política e traduzem-na por miúdos. Refiro-me aos jornalistas que exercem a política, neste caso a nível local. No Luxemburgo, por tradição, sempre houve jornalistas a concorrerem a cargos municipais. E este ano não é excepção. Os que forem eleitos para esses postos vão continuar a exercer a sua profissão na imprensa. Nem a lei nem o Conselho de Imprensa têm nada a opor.

Como jornalista, mas também como cidadão, questiono-me: Como pode um jornalista, suposto ser o "cão de guarda público" e o contra-poder do poder político, ser um e o mesmo?

Deixo aqui a minha dúvida. Aceito respostas via mail. Mas atenção, não há respostas correctas nem brindes para os vencedores.

José Luís Correia 
05.10.2011


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Um homem tranquilo


Ir à sua terra natal era, para Bento XVI, um desafio maior. Soube enfrentá-lo com dignidade e mestria. Mais uma vez, a visita do Papa iludiu todas as expectativas. Como acontecera no Reino Unido e na Espanha, acabou em triunfo.

A sua peregrinação ao berço do Luteranismo, assim como os encontros ecuménicos com os protestantes, constituem um sinal de abertura e inquietação pastoral. Deixando para trás uma Berlim sem Deus, onde, apesar de todos os receios, foi bem acolhido, Bento XVI reiterou o convite ecuménico para nos darmos as mãos a evangelizar. Uma aliança estratégica diante do vazio secularista.

Reconheceu que na rede da Igreja também há "maus peixes", numa alusão expressa aos casos de pedofilia. Mas os 150 teólogos contestatários, e os católicos com a identidade rasgada, como o presidente da República, Wulff, ficaram sem resposta. Divorciado e casado de novo, deixou um desabafo no seu discurso de saudação ao Papa, afirmando que é "importante para a Igreja permanecer junto do povo e não enclausurar-se no fundo de si mesma". Também os teólogos, como muitos ministros e membros do povo de Deus, reclamam há muito o fim de uma "alienação", que, segundo eles, nada tem a ver com a essência do Cristianismo, mas com uma obsessão tradicionalista de normas não pristinas.

Nas suas visitas pastorais, Bento XVI tem pregado que a fé não é uma ideia abstracta ou um pio sentimento, mas um dinamismo que deve transformar as condições de viver, cuidando a casa comum que é o mundo, e respeitando, sem discriminar, a plena dignidade humana. Nada de mais ecuménico.

"Trata-se da mesma fé, embora a partir de ângulos teológicos diferentes: produz-se um encontro com o mesmo Senhor Jesus. Espero que estes dois livros, na sua diversidade e nas suas concordâncias essenciais, possam constituir um testemunho ecuménico, que, neste momento e à sua maneira, será útil à missão comum fundamental dos cristãos".

Estas palavras de Bento XVI, no prefácio de "Jesus de Nazaré", segunda parte, referem-se ao livro do teólogo protestante Joachim Ringleben, "Jesus", de 2008.

Uma tal coincidência de juízos demonstra como se vão aproximando as Igrejas cristãs, separadas desde o tempo da Reforma, aceitando, como sempre actuais, algumas das instituições de Lutero.

Já o concílio Vaticano II acolhera parte da herança luterana, sem lhe dizer o nome, nomeadamente o sacerdócio universal dos baptizados e a centralidade da Palavra de Deus (cf. "Lumen Gentium" e "Verbum Dei").

Não há aqui nada de uma "protestantização" da Igreja católica, como temem alguns, mas um aprofundamento recíproco da fé, que levou, por exemplo, a um acordo católico-protestante, em 1998, "sobre o verdadeiro lugar de Maria no plano Deus".

O facto de termos guardado quatro Evangelhos, e não apenas um, significa que podemos servir-nos de quatro guias para percorrer os caminhos de Cristo, com Cristo, na Galileia. E que não há união sem diferenças.

No entanto, persistem debates na Igreja que revelam zonas de tensão interna. Mas que não se podem ignorar.

Bento XVI tomou uma decisão pastoral de risco enorme, ao acolher os conservadores da Fraternidade S. Pio X, que se tinham separado da Igreja. Será agora difícil recusar o diálogo com os "indignados" que propõem os temas abolidos, como casamento de divorciados, ordenação de homens casados e de mulheres. Se os motivos invocados pelo Vaticano são tão importantes, como é que convencem tão pouca gente?

O diálogo pode ser longo, porque a resposta a estas reivindicações exige uma reforma estrutural das pesadas instituições da Igreja. Mas nada impossível para este ancião, inteligente, culto e tranquilo, o alemão Joseph Ratzinger, Bento XVI.


PE BELMIRO NARINO
28.09.2011

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Democracia, causa, efeito

A democracia não é um fim em si mesma, é um meio. E um meio ambiente. Ambiente no sentido lato e profundo. Holístico, que respeite o homem e a sua circunstância: pessoal, familiar, social, económica, cultural e política.

Não é a democracia que dá um bom governo, bons governos é que dão a democracia. Eleições livres e honestas, separação de poderes, liberdades fundamentais, de tudo isto se pode fazer um pacote e chamar-lhe democracia. Mas democracia é apenas a cinta de papel que cobre o embrulho. O conteúdo é anterior, é causa e não efeito. Basta pensar em Hitler, produto de umas eleições livres.

Democracia é o mínimo de honestidade num governo. É como a justiça humana. Os hebreus aplicavam antigamente a lei de Talião, que consistia em impor como castigo o mesmo dano que tinha sido causado. Era um progresso, em relação à vingança primitiva. A justiça humana é o contrapeso da lei de Talião. Um mínimo.
As transgressões à lei têm de ser sancionadas. Assim funcionam as nossas sociedades, e ainda bem, porque a mesma lei, aplicada a todos, é o melhor garante da liberdade de cada um. Mas "se a vossa justiça não superar a dos doutores da lei e dos fariseus, não entrareis no reino do Céu" (Mt 5, 20). A suposição de que a vontade da maioria defina o bem comum é perigosa. Esta sabedoria colectiva pode ser um meio de enviar os cidadãos para a guerra, e a liberdade para a prisão.

Polybius comparava a democracia (ateniense) a um navio sem comando. Perante um inimigo ou uma tempestade, todos se entreajudam para lutar. Em tempo de acalmia, as disputas, as invejas, os rancores, levam ao naufrágio, mesmo junto à costa.

Não basta permitir a liberdade dos adeptos do regime, deve garantir também a liberdade dos dissidentes, se quer ser democracia. É uma instituição sempre frágil, que acaba muitas vezes no suicídio, porque, como já advertia Montesquieu, é mais perigosa para a sociedade a apatia de um cidadão do que a tirania de um príncipe. Por isso continua certa a definição magistral de Churchill: a democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras que têm sido experimentadas de tempos a tempos.

Grassa uma grave e teimosa crise nas democracias do mundo ocidental, da Europa à América.
Será apenas económica? Não será mais de bem do que de bens?

Noam Chomsky entende que não haverá democracia enquanto as estruturas de produção continuarem a ser capitalistas. Não se pode ser contra o fascismo político e, ao mesmo tempo, apoiar o económico. Não é apenas um juízo de sabor pós-marxista.

Neste mundo em crise, o facto mais evidente é o fim do império americano. Os saudosistas do messianismo planetário, como se Deus confiara aos EUA a supremacia global para governar o mundo, acusam Obama de traidor. Obama herdou duas guerras dispendiosas, do Iraque e do Afeganistão, cujo melhor fim não poderá ser mais que uma vitória pírrica, e teve a sabedoria de não se envolver noutra, a da Líbia, deixando-a aos cuidados da França e do Reino Unido. O abalo financeiro e económico de que sofre o mundo foi em grande parte devido às manobras do capitalismo americano, que se despistou, na corrida desenfreada ao lucro de 2008. O capitalismo americano suicidou-se, e a América sente-se mais fraca, vulnerável.
É a lógica da história. Todos os impérios chegam a um fim.

Agora há dois tempos que se aproximam – o tempo chinês e o tempo árabe.

A ascensão global da China e a primavera muçulmana. São dois movimentos justificados: a prosperidade económica e a democracia. Mas nenhum deles suficiente para preencher os mais profundos anseios humanos. A democracia é um sistema que permite conviver com as diferenças, mas não é fonte nem critério de moralidade. A economia é um bom instrumento para servir o bem-estar do homem, mas incapaz de o definir. Em aberto, ficam questões fundamentais, pertinentes em todos os tempos. A resposta não é política, é metafísica, espiritual (Challenge of faith and Reason, Mt 5,20).



PE BELMIRO NARINO
21.09.2011



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