A carta veio da Direcção da Imigração do Luxemburgo, um departamento do
Ministério dos Negócios Estrangeiros luxemburguês, e é peremptória.
Maria e João (*) "não dispõem de recursos suficientes para eles próprios
e os membros da sua família" e tornaram-se "uma sobrecarga não razoável
para o sistema de Segurança Social" luxemburguês. "Em consequência,
considero a partir deste momento revogar o vosso direito de residência,
bem como o dos vossos filhos menores", termina a carta, que dá a Maria e
João um prazo de oito dias para "apresentar observações".
Maria e João estão há quase quatro anos no Luxemburgo. João chegou primeiro, em 2008, e só esteve um dia sem trabalhar.
"Ao segundo dia arranjou trabalho, graças a Deus", conta Maria, que
veio para o Luxemburgo alguns meses depois com os quatro filhos do
casal. O mais velho sofre de uma doença rara, uma enfermidade incurável
que se agravou com o clima do Luxemburgo. Maria ainda trabalhou durante
15 dias, mas o filho foi internado e teve de deixar o emprego. A doença
do menor não tem tratamento no Grão-Ducado, e de seis em seis meses,
Maria tem de levar o filho a uma clínica no estrangeiro, onde a criança
chega a ficar internada por períodos de três semanas. "Nenhum patrão
iria aceitar isso...".
Como Maria não pode trabalhar, a
família tem de viver com o salário do marido. E como o que o marido
ganha não chega para viver, têm direito a receber um complemento de
Rendimento Mínimo Garantido (RMG), como prevê a legislação
luxemburguesa. Foi um assistente social que informou a família de que
tinham direito ao RMG, como todos os cidadãos comunitários que vivam no
país há mais de três meses. "Mas agora a carta diz que damos prejuízo ao
Luxemburgo e que vamos ficar sem 'droit de séjour' [direito de
residência]", conta Maria, em lágrimas.
Desde que recebeu a
carta, Maria não tem descanso: no dia seguinte estava à porta do
Ministério dos Negócios Estrangeiros para pedir explicações. "Só por
telefone”, dizem-lhe. Uma funcionária chega a dizer-lhe que a carta "é
definitiva” e que "não há nada a fazer, vão mesmo perder o direito de
residência”. Pânico. Pelo telefone, esclarecem-na: sim, tem oito dias
para explicar a situação da família, só depois é que o Ministério toma
uma decisão.
"O meu marido sai de casa todos os dias às 4h30
da manhã para ganhar o salário mínimo. Faz isto há quatro anos. E agora
querem que nos vamos embora, como se fôssemos criminosos? Mas nós
roubámos alguém? Nós matámos alguém, para sermos extraditados do país?
Eu não acho isto justo!".
CASOS NÃO PARAM
DE AUMENTAR
Quem também não acha a situação "justa" é a ASTI. De há uns meses para
cá, a Associação de Apoio aos Trabalhadores Imigrantes foi inundada de
casos como este: cidadãos comunitários com cartas iguaizinhas à de João e
Maria, só mudam os nomes.
"É uma invasão", garante Laurence
Hever, assistente social no Guichet Info-Migrants da ASTI, que presta
informação aos imigrantes.
"As primeiras situações surgiram no
ano passado, mas nessa altura eram casos de pessoas que estavam
desempregadas e tinham trabalhado pouco tempo no Luxemburgo. Desde
Junho, há cada vez mais casos, incluindo de trabalhadores que recebem um
complemento de RMG. Recebemos cinco casos por semana, um por dia. Mas
estas são apenas as pessoas que nos contactam: há pessoas que não
contactam sequer um advogado ou uma associação, e simplesmente não
respondem".
E com apenas oito dias para responder, há muitos a
deixar passar o prazo. "Oito dias para decidir o que vai ser das suas
vidas", indigna-se a assistente social. "Há muita gente a deixar passar o
prazo – têm medo, acham que se não fizerem nada o problema
desaparece... E depois têm de contactar uma associação ou um advogado,
porque, em geral, não são capazes de redigir uma resposta deste tipo. E
têm de recolher documentos e provas, e isso leva tempo".
Na
ausência de resposta, a Direcção da Imigração revoga automaticamente o
direito de residência, "e retira-lhes o RMG e as prestações familiares".
E sem direito a viver no país, "as pessoas caem numa zona de
não-direito", explica Laurence Hever.
"Não são legais nem
ilegais: não têm o direito de residir aqui, mas também não podem
expulsá-los". É que a lei comunitária só permite a expulsão de cidadãos
da UE em casos de segurança ou ordem pública: em nenhum caso a decisão
de afastamento poderá ser baseada em razões económicas, diz a directiva
comunitária sobre a liberdade de circulação. Mas ficar no Luxemburgo sem
direito de residência significa perder o direito a trabalhar no país,
perder o direito às prestações sociais e aos abonos de família, e, a
prazo, "perder o apartamento, tudo”. "São os sem-papéis comunitários",
sintetiza a assistente social, chocada com a falta de critério da
Direcção da Imigração.
"Nunca pensei que chegássemos a este
ponto. Há situações e situações. O que mais me choca é porem toda a
gente na mesma gaveta. Não contesto o direito de o Governo fiscalizar os
abusos, mas há pessoas que pura e simplesmente não deveriam receber
esta carta", indigna-se a assistente social. É o caso, defende, de João e
Maria.
"Aqui, não há qualquer abuso nem aproveitamento do
sistema: a família faz esforços, mais até do que a maioria. O pai é
trabalhador assalariado, e é impossível para esta mãe trabalhar, com
quatro filhos, para mais quando um deles tem uma doença grave".
ASTI QUESTIONA MINISTRO DA IMIGRAÇÃO
Há pouco mais de uma semana, a ASTI convocou uma reunião com vários
juristas para discutir o problema. E decidiu questionar o ministro da
Imigração sobre os critérios que levam ao envio das cartas e à revogação
do direito de residência.
A carta para Nicolas Schmit seguiu
na última sexta-feira e ainda não teve resposta. A de João e Maria,
essa, já chegou. Com a ajuda da ASTI, o casal expôs a situação à
Direcção da Imigração e enviou documentos e provas: atestados médicos
com a doença do filho, recibos de vencimento, cópias do contrato de
trabalho de João. Pensaram que o caso ficaria por aí, mas a resposta do
Ministério fê-los sentir que voltaram à estaca zero.
A carta
diz que a família recebeu "uma soma de mais de 50 mil euros" de RMG nos
últimos três anos, e pode por isso "ser considerada uma sobrecarga não
razoável para o sistema de Segurança Social, tendo em conta que os
rendimentos [de João] não chegam para cobrir as necessidades dele
próprio e dos membros da família". E dá a Maria e João um prazo até
Dezembro deste ano para "reduzirem de maneira significativa" a
sobrecarga para a Segurança Social. Mas em Dezembro a situação da
família não vai ser diferente: "A mãe vai continuar a não poder
trabalhar, e enquanto o marido ganhar o salário mínimo, vão continuar a
ter direito a receber este complemento”, diz a assistente social da
ASTI.
Para Maria e João, a bomba-relógio que receberam pelo correio continua a ameaçar explodir.
Paula Telo Alves
*
O casal pediu o anonimato.