sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Entrevista com realizador Miguel Gomes sobre "Aquele Querido Mês de Agosto" - "O meu filme tem origem numa catástrofe"

"Aquele Querido Mês de Agosto" é um dos filmes portugueses com mais presenças em festivais desde a sua estreia em Cannes, na Quinzena dos Realizadores. O trabalho do realizador Miguel Gomes, que assina a sua segunda longa metragem, foi seleccionado pelo Centro Nacional do Audiovisual (CNA), em Dudelange, para fazer parte de um ciclo dedicado a documentários.

O CONTACTO entrevistou o realizador Miguel Gomes que fala sempre na primeira pessoa do plural quando se refere ao trabalho como cineasta. O realizador de "Aquele Querido Mês de Agosto" diz que está a descobrir agora os emigrantes "vistos cá fora", porque ele próprio está a trabalhar em Genebra, onde dá aulas no departamento de cinema de uma escola de belas artes, apesar de não se sentir "um tipo muito pedagógico".

CONTACTO: "Aquele Querido Mês de Agosto" foi inserido no mês do documentário. Como defines o filme, é um documentário ou não?

Miguel Gomes:
Uma das coisas boas de quando se faz filmes é que não temos de ser nós a defini-los Nós só temos que o fazer, o que já dá algum trabalho. Eu nem sabia que estava inserido numa mostra de cinema documental. O que é facto é que o filme fez vários festivais e foi a alguns de documentários e a outros que não eram de documentários. Não é a minha tarefa definir o filme. Ele tem momentos em que tem mais a ver com o documentário e outras partes em que encenámos as coisas.

C.: Diz-se que a origem deste filme híbrido está num acidente.

M.G.: Dizer que foi um acidente é a versão simpática da coisa. Foi uma catástrofe! Quando se programa o arranque de um filme faz-se a contratação das pessoas, da equipa, e nós tínhamos já as pessoas a trabalhar quando o produtor nos veio dizer que não havia papel para fazer o filme tal como está escrito no argumento. Foi uma situação delicada porque estávamos a um mês da rodagem. O produtor explicou-nos que houve uma promessa de financiamento que não funcionou e um senhor que nos tinha prometido dinheiro que morreu. Coisas assim, um bocado surreais... e então nós pensamos que o melhor seria reformular o filme começando por gastar uma parte do dinheiro disponível indo com uma equipa pequena para a região de Arganil. Filmaríamos isso e deixaríamos o dinheiro restante em reserva para uma segunda filmagem que nós não sabíamos que contornos teria. A segunda rodagem acabou por ter lugar. O filme foi rodado em Agosto de 2006 e depois em Agosto de 2007.

C.: "Aquele Querido Mês de Agosto" pode dar a ideia, aqui no estrangeiro, de que "em Portugal é tudo assim": rural e de certa forma atrasado. Achas que existe o risco de o teu filme passar esta mensagem?

M.G.: O filme já esteve em vários festivais no estrangeiro e recebeu reacções diferentes, mas não creio que exista a impressão de que em Portugal é tudo assim. Aliás, eu nem sei se naquela região é tudo assim. É assim porque eu quis que fosse. E assumo isso. Quem conhece aquela região ou mesmo outras, como o Minho ou Trás-os-Montes, sabe que o mês de Agosto é vivido de uma forma completamente diferente. A comunidade que está nas aldeias é distinta porque os emigrantes regressam e o cenário é diferente. Eu quis fazer uma coisa a partir dessa realidade, mas assumo que a cada momento do filme eu estou a intervir sobre a realidade. Nada daquilo pretende ser um retrato de Portugal. É um retrato daquela região e, em segundo lugar, um retrato daquela região à minha maneira.

C.: O filme é então a tua visão daquela região?

M.G.: Esta é a única maneira de fazer filmes. O cinema tem a ver com afectos, com coisas que a gente gosta ou não. Por exemplo, num plano do filme há dois homens que falam das rodagens. Há um que já fez algumas cenas e outro que vai rodar pela primeira vez. Eles são de aldeias vizinhas, a 800 metros uma da outra, um está de fato e o outro de maneira informal. Eles são totalmente diferentes: um vota comunista e o outro no PSD. Não há por isso uma ideia redutora do povo. As pessoas são todas diferentes umas das outras e, portanto, mesmo a forma como esses homens discutem diz algo sobre eles, a forma como eles são. E espero que isso passe no filme; que as pessoas são diferentes.

C.: Os emigrantes que aparecem no filme podiam ser emigrantes daqui do Luxemburgo, por exemplo. Conheces a realidade da emigração fora de Portugal ou só os emigrantes quando eles regressam de férias?

M.G.: Conheci os emigrantes portugueses lá em Arganil, mas a emigração não é um tema central no filme. O filme não tem a ver com isso. Eu comecei há pouco a dar aulas na Suíça, em Genebra. Eu sou um bocado doente do Benfica e a primeira coisa que eu fiz quando cheguei à Suíça foi procurar onde podia ver a bola. E entrei em contacto com pessoas emigrantes cá, senão só as conhecia nas férias.

C.: Se o filme não tem a ver com a emigração, tem a ver com o amor, como o CNA o classificou?

M.G.: Porque não? Escolhemos as canções da segunda metade do filme com as personagens centrais, o pai, a filha e um primo. Eles tocavam canções e nós escolhemo-las de forma a que haja um percurso em que as canções se fossem tornando cada vez mais românticas. As canções têm um papel dentro do filme de quase comentarem o que se vive entre aqueles três personagens. Por isso, o filme está aqui bem na "Soirée 3 – amour".

C.: Quais são os teus projectos para o futuro sabendo que tens uma grande responsabilidade depois das críticas que te fizeram, nomeadamente em Cannes, augurando-te um brilhante futuro...

M.G.: Mais uma vez, essas declarações são um problema deles, de quem as fez. Como a decisão de classificar este filme nos documentários ou nas ficções... Eu tenho efectivamente um projecto, que vamos filmar em Outubro em África e em Lisboa. Neste momento, o projecto tem uma parte contemporânea que se passa em Lisboa e a segunda parte é em África, muitos anos antes, numa ex-colónia portuguesa que eu não gostaria que fosse reconhecível. O título é "A Aurora", mas mesmo isso pode mudar. Aprendi com "Aquele Querido Mês de Agosto" que é arriscado e parvo da minha parte estar aqui a dizer como vai ser o filme. Até o título, que eu já disse várias vezes publicamente, pode mudar. Há um filme romeno, que está em preparação, que se chama também “Aurora”, e se calhar o novo filme já não se vai chamar assim. É melhor não dizer o que os filmes vão ser antes deles serem porque pode ainda correr muita água debaixo das pontes.

Texto e Foto: Raúl Reis

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