Há 40 anos, como hoje, sou ainda tentado a pensar todo este caminho, feito a salto. Um punhado de gente piquena confiada a um passador sem escrúpulos. A muitos perdia-se a memória. Quisemos saber pelo nome, mas como se diz o nome? Rabiscaram-me qualquer coisa. Dobrei o papel bem dobrado. Mostraram-me um mapa e apressaram-se a dizer que o país era rico, como um presunto, um lugar, assim, no imaginário, para onde os da minha aldeia emigraram, nos idos de 70. E dizê-lo numa só frase é tentador. Que é feito da nossa memória? Um pavio que se risca e acende. Prodigioso. Na escuridão, uma pequena chama vê-se. Diante de mim a malga sorvida por muitas bocas. Se vale a pena? Tudo vale a pena desde que contribua "para o bem dos que amam a Deus" (Ro. 8, 28). Muitos de nós percorremos todo este granítico caminho, temerários, como gente apeada, fugidos à guerra, à fome e à morte, tais as prefigurações do meu Apocalipse. Cauchemar. E quando me foi possível voltar de vacâncias, para as festividades do orago, dei comigo que por todo o lugar me olhavam de modo diferente, até no nome – passei a ser o emigrante là-bas. Esquisito. No dito lugar, que é todo Portugal, já não se pergunta pelo nome, mas pelos números, somente, e logo me dizem se sou rico ou não. E até me estranham a fala. Exasperante. Sou também um imigrante ici. Onde situar-me? Cada caso é um caso. A verdade é que não se vêem com bons olhos os que voltam pobres, nem os que da pobreza se apartam. Está fácil de ver. A afirmação neste mundo faz-se de perdas e ganhos, de aproximação, distanciamento e esquecimento.
Ao presente, o meu mundo confina às minhas raízes. Raízes? Raízes ou memória, aos que já partiram e aos que ainda estão presentes. O meu ser inscreve-se nestes 40 anos de referências. Mas se este não é o meu país, aquele deixou de o ser. O que muda na minha vida? O que em mim também permanece. O resto deito para a poubelle. Eu ainda vou fazendo o meu boulot. Na antiga empresa já não estão a embauchar, dizem. Outros trabalham ao Schwartz. Vivo, por vezes, uma espera indefinida, na incerteza, na dúvida, na angústia, também no medo.
Com efeito, assim é. São os novos males da alma, que não se diagnosticam em radiografias, nem em análises, no dizer da tua médica. Tu olhas atentamente para os outros. Consomes-te numa vida de trabalhos. Mas os outros nem se apercebem da tua existência e condição. Os outros ignoram-te, a começar pelos que tu julgavas próximos.
Impermanência. Transporto comigo o desassossego e a esperança. No lugar da pessoa, o número; no lugar dos afectos, o vazio. Quem, como eu, se fez peregrino, existe, por vezes, no limo da memória e da não-memória. Como e-/i/-migrante acolhem-te; como pessoa, não passas de um número. E se, por acaso, na tua aldeia, te perguntarem há quanto tempo vives e trabalhas là-bas, e lhes disseres, com números, por exemplo, há 40 anos..., então, concluem, que também és luxemburguês, ou mais luxemburguês do que português, visto que comigo partilhas esta experiência. Quem somos? Que me é dado ser, a não ser o outro, là-bas como ici? Por que persistem em não nos aceitar como pessoas? Acolhem-nos como e-/i/-migrantes, na melhor das hipóteses, mas não passamos de um número. E quem é o meu próximo, como nos sugere a passagem de Lucas (Lc. 10, 29)? Voltaremos, na próxima crónica.
António de Vasconelos Nogueira*
*O autor tem um doutoramento em Filosofia e um pós-doutoramento em História Económica pela Universidade de Aveiro; é especializado na vertente de Estudos Judaicos, diáspora e migração portuguesa. (Rubrica quinzenal; próxima publicação: 3 de Fevereiro).
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