A alguns dias de estrear "A Tempestade" em Trier e no Luxemburgo, o actor Luís Vicente cita Eugène Ionesco :
"Deus criou o mundo,
Shakespeare criou a Humanidade"
Partilha com Gil Vicente o apelido e o teatro nas veias, e confia que a arte do palco é realmente a sua grande paixão, apesar de fazer também televisão e cinema. O actor português Luís Vicente, que ficou conhecido pelo papel de Átila na série "Duarte & Companhia", está há um mês em Trier, na Alemanha, para os ensaios de "A Tempestade" de Shakespeare.
A peça é uma co-produção entre A Companhia de Teatro do Algarve (ACTA), de que Luís Vicente é director, o Teatro de Trier, o Teatro Nacional do Luxemburgo (TNL) e o Centro Cultural Kinneksbond, em Mamer, onde a peça sobe a palco a 17 e 18 de Fevereiro, depois de estrear no dia 12 na Alemanha.
Sexta-feira, são cerca das três e meia da tarde, em Portugal ainda é hora de almoço, e assim encontramos Luís Vicente no restaurante The Good Friend , na companhia de Tânia Silva, uma das actrizes da ACTA com quem integra o elenco de A Tempestade. Contam-nos como chegaram à gare do Luxemburgo e enfiaram pela rua em frente, tinham "tantas saudades de comer português", que não resistiram "a um bom bacalhau". A partir daí, a conversa faz-nos viajar por William Shakespeare, com paragens em Eugène Ionesco, Platão, Henry de Montherlant, Vélez de la Guevara, Bertolt Brecht, Lutz Hübner, Inês de Castro, o estado do mundo, os economistas, os políticos. Para regressar sempre a Shakespeare, inelutavelmente.
Luís Vicente conta como o convite surgiu por parte do director do Teatro de Trier, projecto a que se associaram depois o TNL e o Kinneksbond, com o patrocínio da UE e o apoio do Instituto Camões do Luxemburgo e da Caixa Geral de Depósitos. Aceite o convite, convinha saber em que direcção caminhar juntos.
"Há aspectos que são comuns às três entidades", começa Luís Vicente. "Na ACTA, temos preocupações de âmbito artístico, mas também de ordem social. Queríamos explorar a questão das migrações e a diversidade cultural, que são questões que preocupam a Alemanha e o Luxemburgo. Também fazemos esse trabalho em Faro, porque ultimamente têm imigrado para o Algarve pessoas vindas de África, do Leste Europeu, do Brasil. A partir daí, foi fácil decidir em que peça pegar".
Um paradigma que explica o mundo de hoje
Mas porquê Shakespeare? Não foram tentados por Brecht ou outros autores germânicos já que vinham à Alemanha e ao Luxemburgo?
“A ACTA já trabalhou com autores alemães como Offenbach, Brecht ou Hübner, este último é um jovem autor contemporâneo muito bom. Mas a escolha para esta co-produção pareceu evidente às três companhias. Ionesco [ dramaturgo franco-romeno, n.d.R. ] costumava dizer: ‘Só há dois verdadeiros criadores: Deus, que criou o mundo, e Shakespeare, que criou a Humanidade’", recorda Vicente, em jeito de resposta. E explica-nos que A Tempestade “é um texto extraordinário, em que surgem confrontos do ponto de vista étnico, sociológico, e até conflitual na perspectiva da poesia, é um texto que serve todos os intentos das três companhias".
"A Tempestade é um paradigma. A Europa vive um momento difícil”, analisa o actor, evocando a crise, a procura de um sentido por parte do poder político e económico, a vaga de imigrantes que tenta entrar numa Europa que se abre por dentro, mas se fecha como uma ilha aos de fora.
“É sintomático três companhias teatrais, de três países europeus, terem pegado nesta peça que se passa numa ilha, para reflectir sobre o que acontece à nossa volta. Um dos actores da ACTA, Mário Spencer, que faz de Kaliban, é natural da Guiné Bissau, o que introduz reflexões na peça que não tinham passado pela cabeça dos colegas alemães, porque simplesmente não têm o mesmo passado colonial que Portugal. O curioso é que este texto é tratado em Portugal como uma tragédia, e na Alemanha como uma comédia. Uma comédia do poder. O texto tem-nos conduzido a uma reflexão conjunta com a equipa alemã e luxemburguesa, o clima de trabalho tem sido muito bom, muito convicto, com uma poesia que aponta para a reflexão. Quando levamos à cena uma peça, o que é interessante é fazer reflectir os espectadores sobre a realidade. O teatro tem essa missão. Por isso recorremos aos clássicos, porque os clássicos só o são se forem intemporais. E é esse o caso das peças de Shakespeare”, explica o actor.
"Platão, na República, defende que os poetas devem ser expulsos da cidade porque os seus pensamentos corrompem a juventude. Nos tempos que correm, não sei se esta metáfora não deveria ser aplicada aos economistas, porque são actualmente os sujeitos mais fantasiosos que existem, não há entre eles discursos coincidentes, não fazem bem nenhum à cidade. Não sei se também não deveriam ser expulsos da cidade”, questiona o actor. “A cidade precisa de actos conscientes. Com toda a humildade, penso que com esta peça estamos a dar um contributo interessante para uma reflexão, divertida e descomprometida, acerca da realidade que vivemos hoje na Europa”.
Natural de Setúbal, onde nasceu em 1953, filho da cidade de Faro por adopção, desde que aí chegou em 1997 para fundar a ACTA (a convite do prof. José Louro), Vicente recorda as palavras inscritas no frontispício do Teatro Lethes, na capital algarvia: " ’Monet Oblectando’, o que significa ‘Aprender brincando’. É o que estamos a procurar fazer com esta peça".
Não é a primeira colaboração da ACTA a nível europeu, mas Vicente confia que com este carácter multilinguístico é a primeira vez. “Mas todos estão a encarar a experiência como muito enriquecedora”, diz.
Perdidos nas traduções?
A peça vai ser representada em alemão, português e inglês, o que significa na prática que os actores de Faro vão responder às deixas dos actores que se dirigirem a eles nas línguas de Goethe e de Shakespeare. Para que os espectadores não se sintam desfasados ou perdidos nas traduções, estará montado junto ao palco um ecrã com legendas em alemão e português. Esta multitude de línguas não resulta numa torre de Babel, assegura Vicente, "mas num desafio muito interessante para os actores".
“Contracenar com actores que nos falam noutra língua é realmente um desafio. Claro que sabemos o que nos estão a dizer, porque todos conhecemos a peça e é para isso que servem os ensaios. Mas o mais importante é a verdade que cada actor consegue dar à personagem que encarna e não tanto as palavras. Porque o desafio está em fazer perceber ao público as intenções de uma personagem através da linguagem corporal, mais do que através das palavras ou da língua", confirma a jovem Tânia Silva (na foto ao lado), que integra a ACTA desde 2004 e que já vai na sua terceira aventura “shakespeariana”, após "Ricardo III" (2006) e "Troilo e Créssida" (2010).
Tragédia de Inês de Castro é terceiro tema preferido pelas artes
Luís Vicente confia que “gostaria que este projecto abrisse perspectivas” para mais colaborações. Uma das peças que gostaria igualmente de trazer ao Luxemburgo é um projecto que a ACTA está a preparar para Outubro. Trata-se de uma peça sobre Inês de Castro, dirigida pelo encenador polaco Lech Madzik, antigo aluno de Karol Wojtyla (papa João Paulo II), com quem fundou a companhia de teatro Szena Plastyczna , em Lublin. O autor tem várias obras publicadas na Polónia sobre a tragédia de Inês. “Muitas portugueses não sabem que Inês de Castro é o terceiro tema mais trabalhado pelas artes e pelas literaturas no mundo inteiro, isto se falarmos de personagens que tiveram existência factual. O primeiro tema mais abordado é Jesus Cristo e o segundo é Napoleão. Já no século XVI, o castelhano Luis Vélez de Guevara escreveu sobre Inês de Castro, mas foi sobretudo Montherlant, com a sua peça "La reine morte" [1942], que deu uma amplitude mundial à história.”
Átila e a fama do pequeno ecrã
Quando evocamos Átila, a personagem de mafioso que Luís Vicente interpretou em "Duarte & Companhia", série transmitida pela RTP entre 1985 e 1989, o actor não consegue evitar um sorriso. "Foi uma série emblemática, produzida numa altura em que Portugal só tinha dois canais. As condições de produção eram rudimentares. Mas apesar disso, a série foi um êxito fabuloso e está hoje na história da televisão em Portugal. Nenhum de nós tinha consciência que estava a fazer história. Marcou uma época. E ainda hoje me falam na série, porque a RTP está sempre a fazer reposições”.
Mas até nessa sitcom antes da hora já havia uma preocupação social e até política, recorda Vicente. “Até há teses universitárias sobre a série, sabia? Muitos diálogos não eram inocentes, eram inspirados em comentários ou homens políticos da altura. Havia vários níveis de leitura possíveis”.
Depois da série, dedicou-se mais ao teatro, mas nunca deixou a televisão, tendo entrado em novelas como “Laços de Sangue” (2010), “Vingança” (2007) ou “Morangos com Açúcar” (2004). Actualmente interpreta o papel do vampiro Lúcio Cunha em "Lua Vermelha" (SIC). ”Gostei muito de entrar na Lua Vermelha porque é a primeira vez que contraceno com a minha filha [Sara Vicente, que interpreta Maria do Céu]. Trabalhei com muita gente jovem, há muito tempo que um trabalho em televisão não me dava tanto prazer”, recorda. E, para breve, revela que vai participar numa série sobre o Caminho de Santiago de Compostela, numa co-produção entre a RTP e um canal da Galiza.
Mas, em jeito de conclusão, reitera que, apesar da fama que a televisão lhe trouxe, é o teatro que continua a ser a sua grande paixão. “O que faço em televisão, faço-o de maneira honesta, mas penso que o que faço no teatro é muito mais interessante, por isso é o meu caminho preferido e o que mais gosto de partilhar com as pessoas. O teatro dá-me outro tipo de prazer, é uma relação muito mais directa com o público, é um pulsar mais intenso, a preparação é mais profunda. Exige-me mais reflexão, pesquisa. E sobretudo se for Shakespeare. Todos os actores sonham em interpretar Shakespeare. E se a minha popularidade em televisão puder contribuir para atrair mais espectadores a esta peça que trazemos à Alemanha e ao Luxemburgo, fico muito contente com isso”.
José Luís Correia
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