terça-feira, 20 de outubro de 2009

Portugal/Literatura: Saramago escolheu Caim, a Bíblia prefere Abel

O director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lisboa comentou segunda-feira que “seria espantoso” que José Saramago encontrasse algo divino na Bíblia e sublinhou que o escritor escolheu o fratricida Caim e não Abel, a vítima.

“Seria espantoso que um escritor como José Saramago, ateu professo, encontrasse algo de divino na Bíblia ou no Corão. Mas esperar-se-ia que reconhecesse, abertamente, o valor de obras que estão entre os grandes textos do património literário da humanidade”, comentou à Lusa o padre Peter Stilwell.

O teólogo e responsável pelo Departamento das Relações Ecuménicas no Patriarcado de Lisboa reagia às declarações de José Saramago sobre a Bíblia a propósito do lançamento de “Caim”, último livro do Nobel português da Literatura.

Saramago afirmara em entrevista à Lusa que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana", acrescentando que não existe nada de divino na Bíblia nem no Corão.

“Se a ideologia não o permite [reconhecer o valor literário daquelas obras], pelo menos na prática, acaba por reconhecê-lo, ao elegê-los como alvo privilegiado do seu combate”, acrescentou.

O padre Peter Stilwell considerou ainda “curioso” que Saramago tenha confessado, “com a maior candura, o fascínio que nele exerceu a narrativa bíblica do fratricida Caim”, isto depois de ter disparado “uma salva defensiva contra tudo quanto seja religião”.

“Porque prefere a Bíblia a vítima, Abel?”, interrogou.


Escrever "Caim" foi "um exercício de liberdade", diz Saramago

José Saramago afirmou já por diversas vezes que escrever "Caim" foi para si "um exercício de liberdade".

"Não é que este livro seja mal comportado, mas é, sem dúvida uma insurreição, um apelo a que todos se animem a procurar ver o que está do outro lado das coisas", disse.

O Prémio Nobel da Literatura de 1998, com 86 anos, regressa neste seu último livro à questão religiosa, contando, em tom irónico e jocoso, a história de Caim.

Segundo o Velho Testamento, Caim terá sido o filho primogénito de Adão e Eva, que matou Abel, seu irmão mais novo, num acesso de ciúmes, após verificar que Deus mostrara preferência por este.

"Nada disto existiu, está claro, são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens. Eu limito-me a levantar as pedras e a mostrar esta realidade escondida atrás delas", afirma o escritor.

Saramago invectiva Bíblia e Corão


"A Bíblia passou mil anos, dezenas de gerações, a ser escrita, mas sempre sob a dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável. É uma loucura!", afirma Saramago, para quem não existe nada de divino na Bíblia, nem no Corão.

"O Corão, que foi escrito só em 30 anos, é a mesma coisa. Imaginar que o Corão e a Bíblia são de inspiração divina? Francamente! Como? Que canal de comunicação tinham Maomé ou os redactores da Bíblia com Deus, que lhes dizia ao ouvido o que deviam escrever? É absurdo. Nós somos manipulados e enganados desde que nascemos!" afirmou.

Saramago sublinhou que "as guerras de religião estão na História, sabemos a tragédia que foram".

Considerou que as Cruzadas são um crime do Cristianismo, morreram milhares e milhares de pessoas, culpados e inocentes, ao abrigo da palavra de ordem "Deus o quer", tal como acontece hoje com a Jihad (Guerra Santa).

Saramago lamenta que todo esse "horror" tenha feito em nome de "um Deus que não existe, nunca ninguém o viu".

"O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus", afirmou.

Salientou ainda que "no Catolicismo os pecados são castigados com o Inferno eterno. Isto é completamente idiota!".

"Nós, os humanos somos muito mais misericordiosos. Quando alguém comete um delito vai cinco, dez ou 15 anos para a prisão e depois é reintegrado na sociedade, se quer", disse.

"Mas há coisas muito mais idiotas, por exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?", perguntou.

Para José Saramago, "Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca".

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