domingo, 20 de dezembro de 2009

Crónica "Folhas Soltas": Memórias de Nova França - Maria Angélica e o carteiro do rei

A folha solta de hoje chega de bem longe, vem do outro lado do Oceano Atlântico e faz-nos descobrir duas vidas que marcaram a história da Nova França, a colónia francesa das Américas.

Hoje, contornando o hábito desta crónica, falaremos não só de uma mulher, mas descobriremos também a história de um pioneiro português que, no século XVII, palmilhou a imensidão daquelas terras longínquas que são hoje o Canadá.

Embora tenha nascido em terras portuguesas, Maria José não teve direito à nacionalidade do país onde, pela primeira vez, viu a luz do céu. Corria então o ano de 1705 e esta filha de escravos, escrava ficou também. Foi levada para o Quebeque onde entrou ao serviço de uma família proprietária de forjas que a baptizou em Montreal dando-lhe o nome de Angélica, em memória de uma filha que tinha falecido pouco tempo antes. Angélica serviu dedicadamente os seus patrões durante mais de 10 anos e viveu a sua vida de mulher com um outro escravo do qual teve três filhos, todos falecidos em tenra idade. Como o coração tem as suas razões que a razão desconhece, Angélica apaixonou-se por um homem branco, um francês provavelmente originário do sul da Alsácia e desterrado para o Canadá após uma condenação à morte. Como em todas as histórias de amor, ambos começaram a fazer projectos, a sonhar de liberdade e a querer romper as amarras da escravatura e dos maus tratos dos quais eram alvos por parte do patrão. Sonharam, tiveram esperanças e a sorte até lhes parecia sorrir pois a morte prematura do patrão foi como que um sinal da tão almejada liberdade. Mas o destino é por vezes traiçoeiro e o que era uma promessa de felicidade transformou-se numa tragédia sem precedentes. A 10 de Abril de 1734 um incêndio gigantesco devasta em menos de três horas o bairro onde viviam – arderam mais de 40 habitações e do hospital municipal apenas ficou um enorme monte de cinzas. A tragédia é indescritível. Muito rapidamente procuram-se os culpados. Aproveitando a confusão que então reinava, o francês foge, deixando-a sozinha. Este facto vai servir de prova para acusar Maria Angélica de ter posto o fogo para o cobrir. Embora ela clame a sua inocência e não haja quaisquer testemunhas do acto cometido, a declaração de uma menina de apenas cinco anos de idade, sobrinha da patroa, que diz "ter visto a preta subir ao sótão com uma pá cheia de chamas" vai servir de acto de acusação irrefutável. A administração colonial francesa declarando que o acto cometido ou foi um acto de malvadez, ou uma maneira de encobrir a fuga do amante, não hesita em submetê-la à tortura para a obrigar a confessar o crime. Após um julgamento sumário, Maria José Angélica, com apenas 24 anos de idade, é condenada à forca, o seu corpo é queimado e as cinzas são dispersadas ao vento. Mas a justiça dos homens questionou muita gente que não acreditou na confissão de Maria Angélica, arrancada a ferros. Assim, e porque durante muito tempo e em muitas consciências pairou o sentimento de culpabilidade, oito anos depois da sua morte a congregação religiosa da cidade deu o nome de Maria Angélica ao sino da nova igreja de Montreal. Os tempos passaram, a colónia de Nova França, transformou-se e o Canadá nasceu. Mas, em 2002, quase trezentos anos depois deste acontecimento trágico, o nome de Maria José Angélica mereceu as honras na exposição organizada sob o tema "Memória viva de Montreal". Foi em sua memória que um artista plástico canadiano concebeu uma instalação artística. E, em 2004, foi também em sua memória que foi inaugurada uma placa comemorativa no Museu de Arqueologia de Montreal.

Finalmente, em 2006, a governadora geral do Quebeque rendeu publicamente homenagem a esta mulher que, sem sombra de dúvida, foi vítima de uma das maiores injustiças da história do Canadá.

A história do pioneiro português que deixou igualmente o seu nome na história deste país é uma história menos triste, não houve tragédia, embora a sua vida tenha sido uma vida difícil e cheia de atribulações. Chamava-se Pedro da Silva e nasceu em Lisboa por volta do ano de 1647. Já homenzinho (naquela altura por volta dos oito ou nove anos…), Pedro vai trabalhar como estivador, carregando e descarregando os barcos que chegavam e partiam dos cais da cidade. O apelo do mar, a curiosidade de saber o que existe para além da linha do horizonte, o sonho de uma vida melhor, vão levá-lo a tentar a sua sorte em terras de Nova França. Aí, nas margens do rio São Lourenço, continuará a exercer o seu ofício de estivador, carregando e descarregando os barcos que chegam de França, vindos das cidades de Bordéus e de Larochelle. Mas o nosso pioneiro não se fica por aí e abre o seu próprio comércio de expedição e de transporte de mercadorias. É deste modo que, tanto de Inverno, como de Verão, palmilha a imensidão daquele país – no Verão, deslocando-se com a ajuda de um pequeno barco, no Inverno, com o solo gelado, é com um cavalo e uma carroça que percorre milhares de léguas para entregar as encomendas. Começou a ser conhecido por "o Português" e as autoridades locais, tendo ouvido dizer que era homem diligente, pontual e de grande confiança, confiam-lhe um maço de correio para ser entregue a vários destinatários que residiam entre Montreal e a cidade do Quebeque. Os serviços prestados às autoridades francesas foram altamente reconhecidos e em 1705 o Intendente da colónia de Nova França nomeou-o oficialmente "primeiro carteiro", redigindo um documento do qual consta: "Sendo necessário para o serviço do Rei e para o bem público estabelecer nesta colónia um mensageiro para levar as ordens a todos os lugares deste país onde será necessário e tendo sido informado da diligência e da fidelidade de Pedro da Silva, dito 'o Português', sob os auspícios de Sua Majestade o nomeamos mensageiro ao serviço do rei…" . Hoje, no edifício dos correios centrais da rua Saint Jacques de Montreal, existe uma placa na qual se pode ler: "Pedro Dasilva, primeiro carteiro do Canadá". O nosso carteiro português faleceu na cidade de Quebeque em 1717, tendo deixado numerosa descendência.

Mafalda Lapa

(Rubrica mensal. Próxima publicação: 13 de Janeiro)

Sem comentários:

Enviar um comentário