quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Crónica: Por que migramos?

A referência bíblica a Babel (Gn. 11, 1-9) faz-nos saber peregrinos, estrangeiros, o Outro. Mas isto releva do espiritual. Se procurarmos resposta na história económica, as teorias clássicas tomam de Adam Smith (*1) o dilema "da riqueza e pobreza das nações", recorrente em David Landes (*2) e que remete para o factor religioso em economia, ou seja, para a tese de Max Weber (*3) sobre o Protestantismo e o capitalismo, para nos fazer compreender que há nações ricas e outras pobres, o que nos deixa perplexos – as nações ricas, os países desenvolvidos, como o Grão-Ducado, atraem a si mão-de-obra e recursos das nações mais pobres ou menos desenvolvidas, como Portugal.

Como se chega a este estado de coisas? Com o atraso económico português, cujas teses estão em articulação com as da decadência hispânica de Antero de Quental e Oliveira Martins, formuladas nos anos 1870. Antero (*4) refere-se aos factores religioso (transformação do Catolicismo, Concílio de Trento, Inquisição e acção da Companhia de Jesus), político (institucionalização do Absolutismo e monopólio da Coroa) e económico (manutenção do Império colonial marítimo), como principais causas da decadência. Jaime Reis (*5) explica o atraso económico português referindo-se à dependência externa, à especialização no sector agrícola, à importação de manufacturas britânicas, à estrutura fundiária (minifúndio vs latifúndio) e às estruturas mentais (aristocracia vs burguesia/elites empresariais; analfabetismo).

Convenhamos. A migração dá-se porque existe mercado, oportunidades, redes e enquadramento (ou vazio) legal. A oferta de emprego (salários) mantém-se relativamente baixa nos países desenvolvidos (ricos), mas comparativamente alta nos países não desenvolvidos (pobres). Deste modo, a mão-de-obra portuguesa procura trabalho nas economias mais desenvolvidas, com maior índice salarial, enquanto o capital financeiro procura investimentos em mercados e sectores produtivos, de melhor rentabilidade, fazendo deslocar as empresas. Em teoria, pressupõe-se o equilíbrio6, em termos do salário em ambos os mercados, mas na prática isto não se verifica, porque o trabalho indiferenciado, como acontece com muita da mão-de-obra imigrante portuguesa no Grão-Ducado, não produz mais-valias significativas e as diferenças entre as economias e os países aumentam, provocando maiores assimetrias, concentração de riqueza e desequilíbrios nas trocas comerciais, havendo países cada vez mais ricos e outros cada vez mais pobres, um aspecto que, com a construção da UE e a globalização, mais se evidência. No dizer de João César das Neves (*7), "as sociedades pobres não têm o desenvolvimento e pensam que ele é a solução, as sociedades ricas têm o desenvolvimento, mas sabem que ele não é a solução."

Pode-se especular em termos da Nova Economia e dos valores, interpretando o fenómeno migratório como crise e oportunidade de crescimento, uma escolha individual, das famílias, de certas comunidades, e políticas (segurança social, ensino, saúde) associadas à demografia, em termos da relação custo e benefício, porque migrar tem custos, com reflexos nos aspectos materiais da existência, mas também psicológicos (motivação e realização).

Os Portugueses migram para destinos (mercados), onde eles pensam que o seu trabalho seja mais produtivo, independentemente dos seus recursos e das suas qualificações.

No Grão-Ducado, a imigração "a salto" tem início em meados dos anos 1960, mas só a 20 de Maio de 1970 é que o Governo de Marcelo Caetano assina o acordo migratório e passados dois anos, a 11 de Abril de 1972, este é rectificado pelo Governo luxemburguês. Nesta perspectiva, procura-se maximizar as vantagens, através da receita, da poupança e do investimento, e minimizar os riscos e os problemas que representam a escolha de emigrar.

No mercado luxemburguês, os salários que se praticam na construção, nas limpezas e nos serviços HORECA (*8), não são elevados. Se os imigrantes portugueses conseguem fazer poupança, é porque trabalham mais horas e se desdobram em vários trabalhos, enquanto outros procuram rentabilizar a sua poupança através do investimento imobiliário, dos serviços financeiros, dos pequenos negócios ou expedientes.

Há outro aspecto importante – o número de filhos. Em termos da mentalidade camponesa, o número de filhos representa um investimento para trabalhar no campo e assegurar o amparo na velhice. Mas, no contexto da economia global, ter filhos deixa de ser um bem de investimento, pelo ónus financeiro que esta opção representa, atendendo à conjuntura de crise, ou recessão, e ao facto de poder haver trabalhos, mas não empregos, independentemente da formação (dos estudos), para se traduzir em um bem de consumo, mesmo sabendo que, até ver, as políticas da Segurança Social no Grão-Ducado garantem prestações elevadas.

Portanto, mais do que das crises económicas, dos ciclos e contra-ciclos, da conjuntura, a emigração portuguesa contemporânea é estrutural. Resulta de políticas que não valorizam os recursos humanos, não investem no desenvolvimento de produtos de valor acrescentado, nem na formação do espírito burguês empreendedor, o mesmo espírito que cria pequenas e médias empresas [PME’s] de reduzida sofisticação. Ela torna-se um desafio em busca de respostas, com sentido económico e existencial. E todos acabamos por entrar nesta barca vicentina (*9), que desta margem nos pode levar à Glória, passando primeiro pelo "vale da sombra e da morte" (Salmo 23, 4).
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*1 , Adam, 1979. The Wealth of Nations (17761), Harmondsworth: Penguin Books, 3 vols.
*2 Landes, David S., The Wealth and Poverty of Nations. Why some are so rich and some so poor. New York: Norton & Company.
*3 Weber, Max, 1996. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904-19051), Lisboa: Presença.
*4 Quental, Antero de, 1982. Causas da decadência dos povos peninsulares (18711), Lisboa: Ulmeiro.
*5 Reis, Jaime, 1993. O Atraso Económico Português (1850-1930), Lisboa: IN-CM
*6 Ver: filme DVD "Uma mente brilhante" (2001) sobre John Forbes Nash,
*7 Neves, João César das, 2001. A Economia de Deus, Lisboa: Principia: 115
*8 HORECA: serviços nos sectores da hotelaria, restaurantes, cafetarias e catering.
*9 Alusão ao “Auto da Barca do Inferno” (1517), de Gil Vicente, referência pioneira do teatro ibérico.


António de Vasconcelos Nogueira
o autor tem um doutoramento em Filosofia e um pós-doutoramento em História Económica pela Universidade de Aveiro; é especializado na vertente de Estudos Judaicos, diáspora e migração portuguesa. (Rubrica quinzenal; próxima publicação: 3 de Março).

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