sexta-feira, 5 de março de 2010

Crónicas: O Estado e as tragédias da natureza

Viver num país como o Luxemburgo é um salvo-conduto, como provam os acontecimentos das últimas semanas no Haiti, Chile, Portugal (com especial incidência na Madeira), Espanha, França e Alemanha. Quando a natureza se zanga, os Estados não têm meios para socorrer os mais vulneráveis.

É claro que os poderes instituídos, quando confrontados com esta realidade, debitam, invariavelmente, o mesmo discurso - não se deve aproveitar a tragédia para fazer política, o Estado não tem culpa dos maus humores da natureza, etc.

Eu penso exactamente o contrário. É nestes momentos que se deve dizer que o crescente enfraquecimento dos Estados, às mãos do neo-liberalismo, coloca a população mundial numa situação de fragilidade extrema. As piores consequências abatem-se sempre sobre os mais desfavorecidos. É dramático ouvir mães chilenas a chorar perante as câmaras de televisão porque não têm leite para dar aos filhos.

Hoje, ninguém sabe ao certo quanto dinheiro será necessário para reconstruir o Haiti e realojar um milhão e 200 mil pessoas que ficaram sem abrigo. No Chile, são dois milhões nessa situação.

Os técnicos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional estão no terreno, todos os dias fazem contas e todos os dias as corrigem, sempre em alta.

Portugal e Espanha, a meio de uma grave crise económica, foram apanhados também pelas inclemências da natureza. E enquanto dura o impacte noticioso, não faltam promessas de apoio, mas ninguém diz onde vai buscar o dinheiro. Quando o assunto sair da agenda mediática, as promessas vão desaparecendo. Daqui a dois ou três anos, vamos ver pessoas nas televisões e nos jornais a dizerem que ainda estão à espera da ajuda prometida. O próprio presidente do Governo regional da Madeira, o impagável Alberto João Jardim, está apenas preocupado em manter a máquina do turismo em pleno funcionamento.

Por estes dias, ninguém diz que é preciso menos Estado, que é preciso reduzir a factura da saúde e as prestações sociais. Por estes dias, os arautos do neo-liberalismo, estrategicamente, fazem greve de silêncio.

A situação é tão grave que uma das potências europeias, a França, já pediu dinheiro à União Europeia para reconstruir as regiões fustigadas pela tempestade atlântica que esmagou a Europa. Os Estados não têm meios para enfrentar tragédias com estas proporções.

Há vidas perdidas, mas há muitos sobreviventes que ficaram com as suas vidas definitivamente estragadas. Fábricas e barcos destruídos, o que significa a perda de empregos. Lojas destruídas, o que quer dizer que uma vida inteira de trabalho foi por água em baixo, em escassos minutos. Os hospitais, nalguns sítios, esgotaram as suas capacidades. E tudo isto quer dizer que o Estado falhou, engolido pela voragem neo-liberal que se preocupa unicamente, com o lucro, com a multiplicação de capital por capital, indiferente às obrigações sociais que estão civilizacionalmente conferidas ao aparelho produtivo, à economia.

Estas tragédias vieram provar que um Estado eficaz é indispensável ao desenvolvimento e coesão de qualquer sociedade, à justiça social. Um Estado fraco, como pretende o catecismo neo-liberal, torna as sociedades mais vulneráveis, mais frágeis, sem meios para enfrentar os caprichos da natureza. Nem sempre muito Estado é sinónimo de eficácia. Mas pouco Estado é, seguramente, o caminho mais curto para a tragédia colectiva, venha ela de um crash financeiro, como em Setembro de 2008, ou de um horror da natureza.

Por isso digo que o Luxemburgo é um salvo-conduto. Não barrou o caminho à ofensiva neo-liberal, mas controlou-lhe os ímpetos. O que quer dizer que tem instrumentos de regulação que cumprem o seu dever. Tem um Estado forte e bem visível, apesar da discrição do Governo. E tem meios financeiros para enfrentar as maldades do destino.

Outro exemplo da mesma lógica, de diferentes proporções. O serviço público de televisão, todas as semanas, transmite, através da RTP Internacional, um jogo da liga portuguesa, em diferido, em plena madrugada de segunda-feira. Porquê? Para que os emigrantes portugueses subscrevam os canais de pay tv que transmitem os jogos em tempo real. São canais privados que querem, obviamente, aumentar as suas receitas. Mas a RTP devia negociar a questão, porque tem meios para isso. A saber, tem as dotações do Estado, seu único accionista. Que depois lhe paga o chamado serviço público. E depois tem ainda 65 milhões de euros anuais, provenientes da taxa de radiodifusão. Aliás, foi este bolo financeiro que motivou o Governo de Durão Barroso a fundir a gestão da RTP com a da RDP. Mas a RTP está mais interessada em defender os lucros da Sport TV, do que em prestar um verdadeiro serviço público aos portugueses residentes no estrangeiro. Cada Estado faz as suas opções.

Sérgio Ferreira Borges,
analista político
(o autor assina semanalmente no jornal CONTACTO a coluna política "Avenida da Liberdade")

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