Um carro “iludiu” Camilo Nunes, quando partiu na sua demanda luxemburguesa, arrastando a mulher e dois filhos. E quase nos atrevemos a dizer que foi um carro que o levou de volta a Portugal. Pelo meio, foram 19 anos no Luxemburgo. Diz que “adorou” o país enquanto trabalhou. Adelaide, a mulher, não queria deixar Portugal, mas agora só quer estar no Grão-Ducado, junto dos filhos e dos netos.
Éuma uma casa bem portuguesa, cheia de memórias luxemburguesas. As visíveis e as que já se baralham um pouco, afinal, “as coisas passam, já lá vai tanto ano”, reflecte Adelaide Nunes. Estamos na sala do apartamento de Matosinhos, profusamente iluminada por um grande candeeiro de porcelana, que dá (ainda) mais vida aos sofás dourados onde nos sentamos, virados para uma estante-vitrina carregada de louças, ladeada por dois jarrões gigantescos. Num canto, está a televisão, noutro a aparelhagem, no centro, a mesa, coberta por uma toalha de renda e na qual repousam candelabros e flores. Detemo-nos nas fotografias que as paredes exibem, têm cenários do Luxemburgo: o casamento da filha, a comunhão dos netos e, numa moldura digital, “todo” o casamento da neta mais velha, o ano passado.
É segunda-feira e três dias depois Camilo e Adelaide Nunes partem para o Luxemburgo. Vão ficar pouco mais de um mês. É uma viagem comum. “Às vezes vamos de três em três meses, às vezes de seis em seis”, conta Adelaide.
Vão saciar as saudades dos filhos e dos netos. “É tudo lá. Aqui não quero nada, aqui não se podem ter problemas de saúde”, afirma, convicto, Camilo Nunes. Até já era para terem ido “para cima”, que é como quem diz, para o Luxemburgo, mas, para essa altura, os bilhetes de avião eram a 500 euros; conseguiram-nos por 400 para um pouco mais tarde. Agora vão de avião. Agora vão de visita. Muito diferente da primeira vez.
O ano de 1973 ainda estava a começar quando Camilo Nunes embarcou, de carro, na viagem que lhe mudou a vida – a ele e à família – , rumo ao Grão-Ducado: “Conhecia o Luxemburgo porque andei na escola até à quarta classe, sabia que era um país que estava no mapa. De resto, não sabia nada”. Adelaide seguiu-o, de comboio, em Abril - em Agosto foi a Portugal buscar os filhos. Camilo e Adelaide voltaram ao país que os viu nascer em 1992. Os filhos continuam no Luxemburgo. Os netos são luxemburgueses.
A vida nos idos de 70 em Portugal até não corria mal ao casal Nunes. Camilo era estucador. “Ganhava 758 escudos por semana. Mas de prémio de produção ganhava um conto e quatrocentos, um conto e quinhentos”, lembra. Para Adelaide, que na altura não trabalhava por questões de saúde, e para os filhos ia o envelope com o ordenado, “nem o abria”, graceja; ele ficava com o prémio de produção. A vida seguia, portanto, sem sobressaltos.
Até que Camilo encontrou uns colegas de ofício (um deles tinha sido seu mestre), que entretanto tinham emigrado para o Luxemburgo. Estavam à beira de um rio a lavar os carros.
“Foram os carros que me iludiram. Eu pensei, ‘então, como é que eu não tenho um carro também?’”, conta. Um deles tinha um Mercedes. “É impossível. Eu também vou para lá”. A ideia era ganhar dinheiro para uma motorizada, para se poder deslocar para os trabalhos. Um desses amigos desafiou-o a emigrar também. “Se arranjar contrato, sim”, decidiu Camilo Nunes.
O amigo arranjou-lhe contrato e menos de dois meses depois estava no Luxemburgo, depois de ter conseguido a “ressalva” que lhe permitia sair de Portugal (ainda voltaria um mês depois para completar a documentação: faltava-lhe o visto da embaixada luxemburguesa em Portugal). Na altura era fácil arranjar trabalho, constata. “Eles vinham-nos buscar, para a construção civil e para as ‘usines’”. Elas para as limpezas”.
- Não precisávamos de ir para o Luxemburgo, afirma Adelaide Nunes.
- Não precisávamos, concorda Camilo Nunes. Eu vivia bem, com saúde, vivia bem. Mas foi a ilusão dos carros…
- Mas quando ele chegou lá e viu a miséria que havia com os portugueses…
- É verdade, desiludi-me.
- Ele queria vir embora.
Foi difícil chegar ao Luxemburgo, a Esch-sur-Alzette. Nos primeiros tempos, Camilo, ainda sozinho, viveu numa pensão e tinha de ir tomar banho à piscina municipal. Arranjar casa foi um problema e as mudanças de residência constantes - “passámos por uma quinze casas”, calcula Camilo -, mas foram tendo sorte e contando com a ajuda de alguns dos outros emigrantes. Alugaram a primeira casa por quatro mil francos. “Ganhava 30, 35 mil”, recorda Camilo. “Era razoável, a vida não era muito cara. Dava para pôr um bocadinho 'à cotê', como dizem os franceses”.
Mas isto foi “depois”: quando chegou, Camilo trabalhou três meses como trolha, ganhava 13 mil francos. Depois, foi para estucador. “O que me meteu mais medo no Luxemburgo”, confessa (para depois emendar, “medo não é bem o termo, nunca fui homem de medo”), “foi a língua. E depois o racismo que lá existia”.
- As mulheres iam aos estabelecimentos e não havia ninguém que falasse a língua. E desconfiavam muito das portuguesas.
- A gente entrava e eles andavam sempre atrás de nós e aquilo enervava-me, confirma Adelaide.
Até nas escolas havia problemas. Ana Rosa e Rui Manuel, os filhos, tinham nove e sete anos quando a família emigrou. Na escola, atrasaram um ou dois anos, a memória falha a Adelaide, mas o problema era o racismo.
“Batiam nos meu filhos na escola”, recorda Adelaide. Memórias amargas. E, mais tarde, quando a televisão francesa, já depois do 25 de Abril, passou um documentário sobre a guerra colonial portuguesa, Adelaide começou a ouvir muito a expressão “sal race”. “Eles [luxemburgueses] perguntavam-me se o meu marido tinha estado na guerra do Ultramar. Eu, coisa natural, dizia que sim”, recorda. Na altura nem sabia o que significava. Raça suja, sabe-o agora.
“Ah, e o racismo entre os portugueses”, lembra Adelaide. “Por causa das regiões diferentes. Os de cá da terra [Matosinhos] eram os piores”.
E a língua, insiste Camilo Nunes. “A língua foi o principal obstáculo, depois habituamo-nos àquilo”. Ele teve a sorte de ter tido um patrão que foi muito seu amigo. Tendo trabalhado três meses com italianos, conseguia falar essa língua, mas o patrão insistiu em falar francês. “Disse-me: ‘Não, a partir de hoje falamos em francês e quando não souberes, fala em italiano que eu explico-te e vais aprender’”. Aprendeu. “Quando viemos embora falava a 60 por cento, agora a 50 por cento. Já estou aqui há 18 anos”. O luxemburguês e o alemão nunca aprenderam - Adelaide percebe algumas frases em luxemburguês, mas o francês era a sua língua franca, mesmo quando trabalhava (não o fez regularmente), nas limpezas. “O que me custou mais foi os dias da semana e as cores”, diz.
No início, quando emigraram para o Luxemburgo, as saudades apertavam. Até iam ao aeroporto do Findel "só para ver os aviões da TAP, não era como agora que há muitos canais portugueses, nem havia muitos cafés lusos como há agora", sublinha Camilo. Havia os “bailezinhos” ao fim-de-semana, onde se chegavam a juntar cinco ou seis mil emigrantes. “Agora já não é assim”, diz Adelaide.
“Adorei aquele país enquanto trabalhei e acho muito bom para quem trabalha”, admite Camilo.
Mas Camilo já não trabalha. “Quando lhe deram a invalidez foi muito mau”, conta Adelaide, “foi quando lhe tiraram o rim fora”. “A caixa da maladie enviou-lhe a carta logo”. Camilo tinha pouco mais de 50 anos. Não muitos meses depois, regressaram a Portugal. “Com o dinheiro que ganhava da pensão não podia fazer a vida que tinha quando trabalhava”, reconhece Camilo. Ficou a receber 44 mil francos, “quase 200 contos”, mas a vida no Luxemburgo é “muito cara”. “Para me dar não podia ter carro, por exemplo, tinha de andar a pé”. Em Portugal, pelo contrário, é “um rei”. Camilo e Adelaide têm casa própria e carro. A reforma é de 1.800 euros, as despesas extras são as vindas ao Luxemburgo, onde ficam em casa da filha.
Não foi uma decisão fácil para nenhum. Camilo ainda hoje diz que o regresso foi uma opção meramente económica, apressada por problemas familiares. Mas foi Adelaide que pagou a maior factura da aventura luxemburguesa. Diz que preferia não ter ido para o Luxemburgo, “vivia bem em Portugal”, mas passou muitas horas a chorar na hora do regresso definitivo – afinal, acabou por ser feliz no Grão-Ducado: “Os meus filhos lá se criaram. Lá fizeram a Comunhão. Arranjaram namoros. Lá se casaram. Lá nasceram os netos…”.
“Estou bem com a minha vida, tenho casa, pataco no banco, carrinho na garagem, coisas que nunca julguei vir a ter”, confessa, mas, mesmo hoje, diz, “preferia comer só uma tigelinha de sopa com um bocadinho de pão e ter os meus filhos e os meus netos à minha beira”.
Por isso, a poucos dias de mais uma partida, está ansiosa. “Gosto muito de ir lá. Para estar junto da minha filha e do meu filho”. Camilo, nem por isso. Gosta de estar com a família, mas passa os dias a dormir, diz Adelaide.
“Para estar a dormir prefiro ficar aqui. É que lá se chover eu não saio de casa. Aqui, se chover é fácil ir até ao café. É só atravessar o passeio e estou lá”. Vai de carro, claro.
Andreia Marques Pereira,
no Porto
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