segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"Freeganismo" no Luxemburgo: O luxo de viver do lixo

Já imaginou trocar uma ida às compras por uma ida aos contentores do lixo? Saiba que há cada vez mais pessoas que decidem fazê-lo. Não concordam com a sociedade consumista - e deixam de participar nela. Viver do desperdício dos outros torna-se uma opção de vida. O CONTACTO foi conhecer alguns praticantes do "freeganismo" no Luxemburgo, incluindo um português que nasceu no Grão-Ducado.


A noite cai e os dois amigos preparam-se: roupa velha, lanterna, sacos de compras. Pegam nas bicicletas e saem para percorrer os grandes supermercados dos arredores. Objectivo? Dar um mergulho nos contentores do "lixo".

"Nunca se sabe o que vais encontrar... No início não queria acreditar que podes encontrar tanta coisa, que atiram tanto fora. Não só coisas para comer, mas também materiais que podes usar", comenta um deles. "Encontras toda a comida de que precisas: óleo, farinha, pão, frutos e legumes, bolos, queijo...", concorda o outro. "Qualquer coisa que encontrarias no supermercado podes encontrá-la no contentor".

Toni, português nascido no Luxemburgo, tem 27 anos e é técnico de laboratório. Radu, 26, veio da Roménia e é voluntário no programa Graffiti, na Rádio ARA. Levam uma vida sem falta de nada, e vão ambos aos contentores por opção. Supermercados, padarias, mercados de rua... Qualquer sítio onde, ao final do dia, comida boa seja deitada fora pode ser um bom alvo. E garantem que passam um bom bocado. Há dias especialmente generosos. Doze litros de leite de soja, muitos quilos de alperces, de farinha ou de detergente, vários "sets" de facas de cozinha: eis alguns dos achados memoráveis dos últimos tempos.

"Às vezes há tanta coisa que nos sentimos um pouco como se fosse Natal", brinca Radu. "É comida em óptimas condições, que é desperdiçada simplesmente porque há nova comida barata a chegar", explica. Muito longe, de facto, de serem "lixo", muitos produtos são deitados fora só porque há uma anomalia mínima na embalagem, porque se aproxima o prazo de validade, ou porque simplesmente sai mais barato à empresa de distribuição deitá-la fora do que mantê-la a ocupar as prateleiras. Abertos os contentores, vê-se plástico, papel, comida... tudo junto. "É absurdo, num país que se apresenta como sendo verde e ecológico e promotor da reciclagem." E ambos sentem sempre alguma raiva e choque ao ver de perto tanto desperdício. "Eu faço isto para mostrar às outras pessoas a quantidade de comida que está ser desperdiçada todos os dias, comida que está perfeitamente boa e podia alimentar milhões de pessoas", explica Radu, que fala desta opção de vida com as pessoas que conhece. "Quero mostrar que o sistema dos supermercados não presta e que precisamos de alternativas.

"UM DESASTRE ECOLÓGICO E SOCIAL"
Respigar. A palavra é conhecida de muitos portugueses de gerações anteriores, quando multidões de camponeses pobres iam apanhar no campo as espigas que por ali ficavam depois da colheita. Os jovens das cidades de hoje reciclaram o verbo e "respigam" à sua maneira, não por necessidade, mas por princípios éticos e sociais.
"Recuperation" ou "glanage", em francês, e "dumpster diving" (mergulho em caixotes) em inglês, são outras das expressões utilizadas para o acto de ir procurar nos contentores aquilo que nos pode ser útil. "Em muitas outras cidades, como Bruxelas, Viena ou por toda a Alemanha, há grupos que o fazem de forma regular e que mostram que o sistema de distribuição de comida não funciona", observa Radu. Este estilo de vida é conhecido por "freeganismo", do inglês "free" (livre/gratuito), e surgiu nos anos 90, espalhando-se por todas as grandes cidades do mundo. Estas pessoas entendem que as trocas de dinheiro dentro de uma economia capitalista contribuem para inúmeras formas de exploração e injustiça: abuso de trabalhadores, exploração animal, fome, destruição ambiental... Por isso, decidem evitar ao máximo a compra de bens de forma a não participar nessa economia. "É chocante que as pessoas no Luxemburgo não pensem de todo no sistema alimentar: usam-no todos os dias sem reflectir. Choca-me que não se apoiem alternativas. Basta ver a quantidade de iPhones, de carros e de marcas que há neste país... Sentimo-nos mesmo numa sociedade consumista", observa Radu.

"Está gravado no estilo de vida das pessoas que tem de haver acesso a comida barata e de pouca qualidade a qualquer momento, ao mesmo tempo que há comida cara para as elites. Este acesso a comida barata cria conforto e aceitação." Claro que também há no Grão-Ducado muitas pessoas que respigam comida por não terem dinheiro para a comprar, dada a dificuldade em arranjar emprego e a pobreza no país. Para os dois jovens, quando se trata de uma necessidade e não de uma escolha, respigar não é uma coisa boa. Para Radu, o actual sistema económico está a provocar um "desastre ecológico e um desastre social". "Em África as pessoas produzem comida para o mercado europeu, para ser desperdiçada aqui, quando elas próprias não têm comida suficiente para viver! São pagas miseravelmente e não têm meios de subsistência, porque tiveram de abandonar os seus pequenos terrenos de cultivo e trabalhar para grandes monoculturas agrícolas. Por causa do comércio livre e da globalização, a comida tornou-se tão barata para os nossos supermercados que eles podem simplesmente atirar comida fora e continuar a receber mais." E se antes o desperdício era local, hoje está globalizado: "Num contentor no Luxemburgo encontras coisas vindas da Ásia, de Espanha, do Brasil...". "Para quem não quer apoiar isto, respigar é a melhor forma", observa Toni, que começou a fazê-lo nos últimos meses. "Já é desperdício, o mal está feito, não estás a participar no sistema." Um sistema que, segundo dados impressionantes das Nações Unidas, faz com que hoje um terço de toda a comida produzida no mundo seja desperdiçada. Mais chocante se pensarmos que aquilo que desperdiçamos na Europa – 90 milhões de toneladas de comida a cada ano – é o dobro da comida necessária para alimentar todas as pessoas com fome no mundo inteiro.

"A MUDANÇA COMEÇA POR NÓS"

"Vi-me como um escravo neste sistema de consumo, num sistema que vive só para o dinheiro, e em que tantas pessoas e animais sofrem.” Para não participar no sofrimento causado aos animais, Toni decidiu há dois anos tornar-se vegano: não consome nenhum produto de origem animal, seja carne, peixe, ovos ou leite. "Os animais sofrem mais do que nós, sendo que nós temos escolha e eles não. Não têm possibilidade de se defender. Não queria continuar a participar na morte de animais e no sofrimento de pessoas por dinheiro." "Tento viver da forma que acho que as coisas deviam ser no futuro, e ignorar aquelas coisas que não fazem parte da minha utopia", explica Toni. "Há muitas injustiças neste mundo, mas em relação à comida é fácil mudar - consumimos todos os dias. A mudança começa por nós." Para ele a chave é não ficarmos pelo preço, o aspecto ou o sabor do produto - mas pensarmos em tudo o que está por detrás. "Temos escolhas. Cada um decide o que vai fazer com o dinheiro que tem na mão, onde vai participar com esse dinheiro, que patrão vai sustentar, ou que coisas boas vai fazer. Vamos só comprar o mais barato ou interessar-nos mais pelo que está por trás?" Toni considera que se diminuir o número de pessoas que consomem, que participam no sistema, isso pode ajudar a que ele mude, se ao mesmo tempo apoiarmos alternativas. "Procuro apoiar empresas que não tenham como prioridade fazer dinheiro, mas tenham outros valores e princípios."

Para além de irem respigar, os dois amigos têm uma pequena horta em casa, e quando compram coisas preferem comprar em lojas biológicas, cooperativas e de produção local. "Tento comprar menos do que vem de longe, encontrar substitutos que sejam produzidos mais perto. Para o chá, chocolate, café, coisas que vêm de longe, não se sabe como as pessoas são lá tratadas. Por isso nesse caso prefiro investir em produtos de comércio justo ("fair trade"). É uma pequena certeza de que estás a sustentar algo que queres mudar no sistema.” Este jovem português recorda como antigamente as pessoas produziam os seus produtos, cultivavam alimentos, tinham os seus próprios animais. "Respeito muito mais essa cultura antiga portuguesa do que a cultura actual no Luxemburgo: as pessoas não sabem de onde a comida vem". E lamenta a apatia desta geração em relação ao que consome. "É pena que se percam estes hábitos, que se tenha vergonha de meter as mãos na terra. Que miúdos fazem isso? Fazem pouco dos agricultores, sem perceber que dependem deles. Não sabem o que têm no prato, nem como funciona este sistema”, observa Toni. E lança a pergunta: "Se nem sabes de onde vem o que comes, como hás-de saber o resto?". "Muitas pessoas que encontro, independentemente do seu contexto social, estão muito interessadas e querem vir experimentar respigar connosco", conta Radu.

Se por um lado há hoje muita gente que começa a mudar os seus hábitos de consumo, Toni diz que a maior parte das pessoas até pensa no que consome, mas não faz a mudança – vai sempre ao mais barato. Mas ele não esmorece. "Resistirmos com as nossas ideias e valores e estarmos presentes já é importante, para que as pessoas vejam e ouçam falar. Se fores uma pessoa activa e falares disso, a família e amigos vão sendo informadas e pensam nas coisas, pela tua simples presença. Saber que és vegano ou que vais respigar já as faz pensar. Podem procurar na internet ou podes explicar. Se não souberem não existe para elas", diz Toni, concluindo: "Se não mantiveres os teus valores nada vai mudar.”

Texto e fotos: Francisco Pedro

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