sábado, 24 de dezembro de 2011

Duas famílias luxemburguesas abriram as portas de casa ao CONTACTO e contam como vão passar a consoada

Em vez de bacalhau para a ceia, os luxemburgueses comem "Traïpen", uma espécie de chouriço de sangue luxemburguês. Em vez de bolo-rei, o Stollen de origem germânica. Mas há quem cobice iguarias francesas ou não se importe de comer apenas uma sandes. As tradições luxemburguesas já não são o que eram? Descubra as diferenças entre os Natais passados e o Natal presente das famílias luxemburguesas que abriram as casas ao CONTACTO. 

O carro que Aline Schiltz (a primeira à esquerda, na foto de cima) conduz tem um autocolante com o galo de Barcelos no vidro de trás. Lá dentro, ouve-se um disco antigo de António Variações. "Esta música comove-me", diz Aline em português perfeito.

Aline é luxemburguesa mas viveu sete anos em Lisboa, para onde foi como estudante Erasmus. Em Portugal fez um estudo sobre a emigração do Fiolhoso para o Luxemburgo e as casas típicas dos emigrantes portugueses.

Agora está no Grão-Ducado para fazer um doutoramento sobre a comunidade portuguesa no Luxemburgo, mas continua muito ligada a Portugal, e não perde uma ocasião de lá voltar. "No ano passado levei os meus pais a passar o Natal em Lisboa. Chegámos no dia 23 e passámos as festas com amigos. Mas para nós, o mais importante é estarmos juntos".

Este ano a família Schiltz passa o Natal no Luxemburgo, em casa dos pais de Aline, por onde já se passeiam, perfeitamente integradas, as gatas portuguesas da investigadora, Mimi e Agostinha. De Londres e Bruxelas vêm as duas irmãs e os dois sobrinhos de Aline. A mãe, Michelle Schiltz, já cozinhou os "Stollen" (uma espécie de bolo-rei de origem germânica, com frutos secos e frutas cristalizadas), e reserva-os agora embrulhados em celofane transparente para oferecer aos amigos e família. "Devem fazer-se no primeiro domingo do Advento, para estarem bons nesta altura", explica a assistente social reformada.

Nas sobremesas, só se sabe que vai haver também tronco de Natal ("bûche de Noël"), um doce tradicional em países francófonos. Mas a ementa principal ainda está por decidir, até porque a família admite que não segue à risca as tradições gastronómicas luxemburguesas.

"Antigamente, era diferente. Na consoada, quando voltávamos da missa da meia-noite ('Metten'), comia-se sopa de cebola e chouriço de sangue ['Traïpen' ou 'boudin noir'], com puré e compota de maçãs", conta o pai de Aline, Jean Schiltz. "Aquecia!". E no dia seguinte "comia-se peru, e de sobremesa o tronco de Natal", prossegue Michelle. "Mas nem sempre era peru. O Luxemburgo era muito pobre, e muitas famílias criavam um porco, ou um peru, ou galinhas. O que era servido em casa era de produção caseira", recorda Michelle.

"Agora também temos um porco, mas com o tempo tornámo-nos moles, e guardamo-lo de ano para ano: não temos coragem de matar o animal", brinca o pai de Aline. Jean Schiltz, dentista reformado, vive com a família numa casa de campo perto de Ettelbruck desde 1975, mas nasceu na capital. E as recordações dos Natais da sua infância evocam menos as tradições do mundo rural que os pequenos luxos que só a cidade era capaz de proporcionar.

"Quando eu era pequeno e vivia com os meus pais na cidade do Luxemburgo, o ponto alto do Natal era o gelado da Namur. Só tínhamos gelado uma vez por ano. Era entregue casa a casa numa camioneta, e para nós era uma excitação: 'Vem? Não vem?'". Desses Natais passados, Jean recorda ainda as músicas tocadas ao piano, o pinheiro que a mãe decorava "com velas verdadeiras" e a porta de casa sempre aberta. "É verdade, a tua mãe acolhia sempre os viajantes que andavam à boleia. E na nossa casa também havia sempre portas abertas: vinham os miúdos todos das redondezas, o que naquela época não era habitual", conta Michelle.

A tradição da hospitalidade, essa, mantém-se na família Schiltz. "Já tivemos vários Natais com amigos estrangeiros que não tinham família no Luxemburgo. Um ano tivemos mesmo um Natal africano, com comida típica africana, e foi muito agradável", conta Aline.

E para este Natal, já decidiram a ementa? "Esperamos que haja gelado!", brinca Aline. "Eu gostava de começar uma nova tradição: comer sanduíches. Mas por alguma razão, a moda ainda não pegou...", ironiza o pai da investigadora.

A tradição já não é o que era 

"As coisas mudaram muito nos últimos 30 anos", diz Jeanny Goerend (a primeira à esquerda, na foto ao lado). "Quando eu era miúda, as famílias ainda iam à missa da meia-noite, a maioria, pelo menos. Hoje em dia o Natal é mais comercial. Agora oferecem-se presentes. Antigamente só havia prendas no São Nicolau [festejado a 6 de Dezembro]. Agora o São Nicolau ('Kleeschen') continua a ser importante, mas nos últimos anos também surgiu o hábito de dar prendas no Natal", explica a funcionária europeia.

O marido, Romain Goerend, concorda. "É verdade", diz o antigo jornalista da RTL (rádio e televisão), hoje reformado. "No Luxemburgo havia a tendência para festejar sobretudo o São Nicolau. Hoje, por causa da proliferação da internet, sobretudo, as coisas mudaram. Antes nunca se tinha ouvido falar do Halloween, por exemplo, e agora é uma festa que também é festejada no Luxemburgo – o que curiosamente é uma espécie de revivalismo celta. O Luxemburgo tem um passado céltico, ligado aos gauleses – o que de resto nos liga aos portugueses, com os celtiberos", exemplifica.

Mas este apaixonado pelo estudo da História não se angustia com as mudanças que o Natal sofreu nos últimos anos. Até porque, garante, as tradições natalícias luxemburguesas são uma criação recente.

"Acho que nunca houve verdadeiramente, à parte algumas canções de Natal luxemburguesas compostas depois da Guerra, nos primeiros anos da rádio luxemburguesa, tradições especificamente luxemburguesas. Adoptámos as tradições regionais dos nossos vizinhos", explica.

"De facto, há poucas especialidades gastronómicas luxemburguesas. Era uma população rural que tinha pratos muito simples, muito rústicos. Antes, no Natal, eram refeições muito simples, como o chouriço de sangue. Isso mudou completamente: agora, tornou-se a melhor refeição do ano", explica Romain.

O antigo jornalista ainda se lembra de quando o chouriço de sangue era um prato apetecível.

"Quando eu era criança, lembro-me de um Natal ter sido convidado para tocar flauta de bisel na missa da meia-noite". Nessa noite, o pai levou o grupo a comer "a ementa tradicional, o 'boudin noir' com couve roxa", a um restaurante. "Ir a um restaurante era um evento raro naqueles tempos, e recordo-me sempre desse Natal, com muita neve, um Natal verdadeiramente clássico".

Hoje o hábito de comer chouriço de sangue na consoada está em vias de extinção, mas à mesa dos Goerend não vai faltar o tronco de Natal "com creme de manteiga", garante Jeanny. Mas a especialidade natalícia por que todos anseiam é o patê de lebre caseiro feito pela funcionária europeia, que nasceu no Luxemburgo mas é filha de pais franceses. Um prato atípico, mas que não destoa nas mesas luxemburguesas, assegura o antigo jornalista. "Afinal, sabe o que se diz da comida luxemburguesa: tem a qualidade da comida francesa, servida nas quantidades da comida alemã!". E o importante é mesmo estar com a família. "Essa dimensão ficou-nos, a festa da família: passamos o Natal com os nossos filhos", conclui Romain Goerend.

Paula Telo Alves 
(texto e fotos)

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