quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Reportagem: "A língua que reina nos 'chantiers' é o português"

Estão há 20 anos no Luxemburgo mas só falam português, "a língua que reina nas obras". Antes, a experiência chegava para certificar as suas competências e progredir na carreira. Hoje, pede-se-lhes que voltem aos bancos da escola e obtenham certificação teórica, mas a língua é um problema. O pouco francês que aprenderam não chega para terem formação nesse idioma, garante a OGB-L, que quer uma solução para os trabalhadores do sector.

Pedro Pedreiro (chamemos-lhe assim*) trabalha nas obras desde que chegou ao Luxemburgo, há 20 anos. Faz parte dos milhares de pedreiros e carpinteiros de cofragem ("maçons") que a convenção colectiva do sector agrupa na categoria B, e está no terceiro escalão. Na gíria da convenção colectiva e para efeitos salariais, é um B3. Isto quer dizer que este carpinteiro é capaz de trabalho autónomo, de ler uma planta de construção e de executar as indicações de um "croquis". Já teve 23 homens a seu cargo durante três anos, e a empresa onde trabalha ficou "muito orgulhosa" com o seu trabalho. Mas para passar ao escalão seguinte (chefe de equipa) e passar a receber um salário de acordo com as funções que já desempenha, a lei luxemburguesa exige que as suas competências sejam certificadas pelo IFSB (Institut de Formation Sectoriel du Bâtiment), um instituto criado em 2002 para dar formação aos trabalhadores da construção. No exame de aptidão, Pedro chumbou duas vezes e foi obrigado a frequentar a formação para B2, um grau abaixo do que exerce há 20 anos. Mas no exame final do curso de B2, voltou a chumbar.

"Correu mal por eu não perceber o francês. Eles deviam primeiro dar uma formação em francês ou dar as aulas em português, porque senão só facilitam a vida aos luxemburgueses, aos belgas e franceses. E não são eles que vão ensinar os portugueses a trabalhar!", queixa-se. "O nosso problema é falarmos sempre com portugueses. Eu compreendo o francês e a falar desenrasco-me mais ou menos, mas a escrever e a ler tenho dificuldades", admite.

"FRANCÊS É A MAIOR DIFICULDADE"

Pedro não é caso único, garante José Pinto, presidente do sindicato da construção na OGB-L. "Conheço excelentes trabalhadores que chumbaram três vezes no exame". O sindicalista vem defendendo que o IFSB dê formação em português – uma proposta que a OGB-L lançou em 2008 (ver caixa) –, com formadores que poderiam vir do Instituto de Formação Profissional em Portugal.

"Actualmente, é a língua portuguesa que reina no 'chantier' [estaleiro de construção]. Em algumas empresas, 75 % dos trabalhadores são portugueses. Temos jugoslavos, franceses, belgas e falam todos português, e quando não falam compreendem. Na minha empresa, até um luxemburguês que lá temos fala português", explica ao CONTACTO.

Se o português é língua franca nas obras, na formação profissional é um "handicap". "Há pessoas que trabalham há 20 anos no Luxemburgo e não falam uma palavra de francês. Algumas são analfabetas. 'Oui, chef', 'non, chef', é tudo o que sabem dizer". É o caso de Fernando*. "Sei fazer o meu nome e pouco mais. Francês não falo nada", diz este operário de 56 anos. E conta a história de quando o chefe lhe veio dizer que pusesse óculos de protecção. "Eu respondi-lhe 'Oui' mas não percebi nada, e ele não percebia porque é que eu dizia que sim e não punha os óculos".

Fernando é "um excelente carpinteiro de cofragem", garante José Pinto, tal como José*, de 52 anos, que só tem a quarta classe e fala um francês rudimentar. "Mas se mandarmos estes homens fazerem a tal formação, daqui a vinte anos ainda não passaram". Riem-se os dois e concordam. "Eu já não tenho cabeça para isso", desculpa-se José. Mas Fernando, analfabeto, não é tão pessimista: "Eu era o mais velho da família e não pude ir à escola, tive de ir trabalhar para ajudar os meus irmãos. Mas agora em Portugal há velhos de 70 anos a aprender computadores. Há sempre tempo para aprender".

APRENDER A APRENDER

António Ferreira da Costa chegou ao Luxemburgo em 1988 e teve de se adaptar às circunstâncias.

"Nos primeiros cinco ou seis anos foi difícil, porque trabalhei com italianos. Aqui há uns anos, eu falava melhor o italiano que o francês. Depois comprei um dicionário e comecei a traduzir algumas palavras, e agora dá para desenrascar em qualquer parte onde vá, mas nas coisas mais complicadas prefiro pedir ajuda a alguém".

Tem 47 anos e a quarta classe. No exame de aptidão do Instituto de Formação para o Sector da Construção, um teste prévio obrigatório para ser admitido nos cursos, chumbou. Ele e mais 21 pessoas. "Éramos 27, todos portugueses. Só passaram seis".

Apesar de ter a categoria profissional de B2 (a meio do escalão) há 22 anos, teve de recomeçar do zero e frequentar o curso para o grau inferior, e as dificuldades que encontrou não foram só linguísticas.

"[O curso] havia de estar traduzido para português. É a primeira dificuldade para nós. Há palavras que não conhecemos e temos de perguntar ao monitor. Uma vez nem o monitor sabia o que aquela palavra queria dizer. Depois, o pessoal é especialista a trabalhar, e eles dão muita matéria que não se aplica na realidade".

O que lhe valeu foi que a formadora "falava devagarinho e traduzia algumas coisas para português". "E depois havia lá os que falavam bem o francês, e traduziam-nos. Ajudávamo-nos uns aos outros".

"Em muitos casos, as designações técnicas não são as que os trabalhadores conhecem", explica o presidente do sindicato de construção da OGB-L. "Às vezes chama-se a um instrumento 'um chavelho', toda a gente diz 'passa-me o chavelho' e toda a gente sabe o que é, mas as pessoas não sabem o nome técnico", observa José Pinto. O que não os impede de serem bons profissionais, garante. "Uma vez um formador disse-nos: 'O que é que vocês estão aqui a fazer [na formação para B1]? Vocês sabem mais que muitos B2 ou B3 que passaram por aqui, só que eles passaram o teste [de admissão] e vocês não!", conta António da Costa.

"A gente sabe o que está a fazer, não é preciso ir à escola para saber o que está a fazer, mas é preciso ir à escola para ter trabalho", resume António.

E não é só a língua que coloca dificuldades a estes homens, garante Filipe*, com 43 anos e o 9o ano do liceu. Filipe chumbou no exame de aptidão para B3 e teve de fazer o curso de B1, apesar de exercer a profissão como B2. "A língua para mim foi um grande obstáculo. E a matéria, que é para engenheiros e não para trabalhadores da construção. Para quem tem pouca escola em Portugal, que é o caso da maioria das pessoas, o curso é dificílimo", garante.

Na sua turma, a maioria ficou pelo caminho. "Éramos 10, todos portugueses, e só passaram quatro [no exame final], uns por causa da língua, outros porque são pessoas com uma certa idade e já não entra nada na cabeça".

António da Costa foi um dos que passou o exame de B1 no ano passado e está ansioso por que o chamem para o curso seguinte. "Se me chamarem para B2, vou fazê-lo", garante ao CONTACTO. E depois das dificuldades por que passou, já tem saudades da escola.

"Eu no início dava-me o sono, porque não estou habituado a estar sentado. E é tudo diferente do que estamos habituados. Uma vez pediram-nos para calcular o volume de terra retirado de uma vala, dando-nos as medidas, e eu não sabia fazer isso. E os ângulos: no 'chantier' estamos habituados a traçar com régua e lápis, e eles lá no IFSB trabalham com um sistema diferente. Foi difícil, ficava a estudar até à meia-noite porque havia muitos cálculos, às vezes doía-me a cabeça, mas agora já tenho saudades e quero continuar", conta ao CONTACTO.

É bom que continue: só tem diploma de B1, e se "perder o emprego e for para outro, vai ser contratado como B1" apesar de actualmente trabalhar como B2, avisa o sindicalista da OGB-L. Descer de escalão significa baixar de salário, dos 13,7450 euros por hora que auferem os B2 para os 12,4846 que a convenção colectiva prevê para os B1 – menos 222 euros ao fim do mês. E não fazer a formação significa ficar preso no mesmo escalão, a ganhar o mesmo salário até à reforma – ou até serem "incapazes de trabalhar por causa de problemas de saúde, quando um bom operário podia ser convertido num técnico se tivesse formação", lamenta José Pinto.
PTA

* A maioria dos entrevistados nesta reportagem pediu o anonimato.

Dificuldades linguísticas dos trabalhadores do sector da construção

Um problema à espera de solução

Desde 2002 que a lei exige um diploma emitido pelo Institut de Formation Sectoriel du Bâtiment (IFSB) para progredir de escalão profissional e aumentar de salário. Antes, bastava a antiguidade.

Para a maioria dos portugueses do sector, isso significa fazer formação e exames numa língua que não dominam.

Na OGB-L, há muito que se discute o problema, que não se limita "aos trabalhadores que estão no activo e afecta muitos no desemprego", frisa o presidente do sindicato da construção. E o assunto já chegou ao governo luxemburguês.

"Já falámos ao ministro Biltgen [titular da pasta do Emprego na última legislatura] e agora falámos ao Nicolas Schmit [actual ministro do Emprego e da Imigração]", recorda José Pinto.

Em Novembro, o embaixador de Portugal no Luxemburgo já abordara o problema com Schmit: 32 % dos desempregados são portugueses, o que representa 10 % da população activa portuguesa. Muitos "são pessoas que ainda não têm idade para a reforma e que estão em situação precária", "empregados pouco qualificados" a quem "a crise no sector da construção afectou particularmente", disse nessa altura Pessanha Viegas ao CONTACTO.

"O problema é que não dominam o francês escrito e nem sequer passam nos testes de admissão para poderem receber formação. A comunidade portuguesa funciona ainda muito em circuito fechado, e o português é a língua utilizada no trabalho e na família. Uma possibilidade que discuti com o ministro Nicolas Schmit seria fazer testes orais de admissão. A outra é dar formação em português, com a colaboração do instituto de formação profissional equivalente em Portugal", avançou na altura ao CONTACTO.

Uma proposta primeiro avançada pela OGB-L em 2008 mas a que muitos se opõem, a começar pelo Instituto de Formação para o Sector da Construção.

"Os patrões são contra [a formação em português], e o IFSB é financiado integralmente pelo patronato", diz Luc de Matteis, secretário do sindicato de construção que José Pinto preside. "Falámos com a ministra do Trabalho portuguesa para ver o que se podia fazer para ajudar estes trabalhadores, mas a discussão não é tão simples como isso. Não basta 'importar' formadores portugueses, porque depois os patrões exigem que os operários falem francês", diz Luc de Matteis

José Pinto acha a exigência irrealista. "Nas empresas as pessoas dizem: 'Ah, mas eles deviam aprender francês'. Mas é difícil, para alguém que tem 40 ou mais anos e tem uma profissão pesada fisicamente, ir agora aprender uma língua de raiz. Estas pessoas nos últimos 20 anos foram úteis nos 'chantiers' [estaleiros de construção], e agora de um momento para o outro têm de fazer formação por causa dos patrões. Em vez de enfiarmos as pessoas num buraco, porque não dar-lhes formação em português?", insiste.

Luc de Matteis hesita.

"É preciso termos cuidado para não tomarmos decisões que parecem boas mas que depois agravam o problema", recomenda. "A questão não é obrigar as pessoas a aprender francês por uma questão nacionalista, por ser uma da línguas do país, mas para estarem protegidas. Quem só fala português está fragilizado no trabalho, os patrões pagam-lhes menos e eles não se sabem defender".

Dar formação em francês é a solução que o secretário do sindicato da construção prefere, mas também aí há vários problemas. É que a lei luxemburguesa não prevê licenças para aprendizagem do francês: o "congé linguistique" aprovado em 2008 só contempla o luxemburguês, e aprender uma língua nova leva tempo, diz José Pinto.

"É preciso encontrar uma solução a curto prazo para que os trabalhadores que estão cá há 20 ou mais anos possam evoluir entre [os graus de] B1 e B3", insiste. "Os trabalhadores portugueses que agora chegam já têm mais habilitações, e daqui a dez anos não haverá este problema".

O assunto vai ser objecto de discussão de um grupo de trabalho criado pelos ministros do Emprego dos dois países.

PTA

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