quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Entrevista com um designer de um construtor mundial da indústria automóvel: "Que futuro para o automóvel?"

Jean-Claude (nome fictício, a pedido do entrevistado) é gestor de projectos e designer para uma marca internacional de automóveis. Cabe-lhe não só imaginar os modelos de amanhã, mas também apresentar as soluções inovadoras, tecnicamente viáveis e economicamente rentáveis para responder às exigências dos automobilistas, sem trair o espírito de marca do construtor para o qual trabalha. O CONTACTO esteve à conversa com este responsável, com quem falou sobre os desafios que se colocam quanto ao futuro do automóvel. 

Ilustração: Alexander Torres


CONTACTO: Quais são, para si, as grandes tendências design para o automóvel, digamos, dentro de dez anos?

Jean-Claude:
O futuro do  automóvel em termos de  design passa por carros mais planos, mais baixos e com pneus mais estreitos. Será o grande regresso do aerodinamismo, com uma cada vez maior diminuição da superfície frontal do veículo, para todos os tipos de carroçarias, incluindo os breaks , monovolumes e veículos de tipo SUV (veículo utilitário desportivo: Sport Utility Vehicle).

Depois de duas décadas de carroçarias monovolumes – com capôs e pára-brisas alinhados – vamos regressar aos capôs mais longos, com pára-brisas mais verticais.

Os faróis ficarão mais pequenos e estarão encastrados como pequenos diamantes que brilham. As entradas de ar, nomeadamente na grelha, vão poder ser ocultadas com pequenos painéis eléctricos, em função da necessidade de arrefecimento do motor e de modo a reduzir a força de arrasto do veículo e a torná-lo mais aerodinâmico. Pequenos apêndices aerodinâmicos vão poder ser accionados em função da velocidade pretendida, por forma a melhorar ainda mais o coeficiente de penetração do ar.

Outras das grandes mudanças é que os automóveis vão passar a ser cada vez mais ligeiros, muito mais ligeiros.

CONT.: E em 2040, já é possível imaginar?

J.-C.:
O carro de 2040 terá todos os fundamentais do carro de 2020, que são idênticos aos do ano 2000, de 1980 e dos anos 1950: quatro rodas bem redondas, um habitáculo, pelo menos um motor, portas, vidros, assentos e uma bagageira.

Em 2040, o que um automóvel vai integrar além disso é um máximo de dispositivos de ajuda à condução e ao lazer. O habitáculo poderá vir até a dispor de um sistema de luminoterapia, tornar-se um lugar lúdico e com mais conforto, solicitando os cinco sentidos do condutor e dos passageiros.

Ao lado de tudo isso, deverá ser ainda mais aperfeiçoado e consumir menos energia.

CIDADÃOS DO FUTURO VÃO PREFERIR
O SERVIÇO À POSSE


CONT: Há um futuro para o automóvel ou dirigimo-nos para um horizonte além de 2050, em que as cidades vão estar destinadas apenas aos peões e aos transportes públicos? A indústria automóvel sabe como reagir para fazer durar o transporte privado?

J.-C.:
Sabe, e é por isso que a indústria automóvel vai tranquilamente transformar-se e passar a oferecer "mobilidade individual": em vez de vender simplesmente "objectos" – carros, motos, carrinhas, etc. –, vai começar a propor cada vez mais serviços de mobilidade. O sector vai passar a oferecer aos clientes o transporte mais adequado à sua necessidade pontual. Graças à conectividade (internet, GPS, telefonia móvel, etc.) isso vai fazer-se com uma facilidade desconcertante. Vamos evoluir para uma geração de indivíduos que vão preferir a utilização e o serviço da mobilidade à posse de um veículo...

CONT.: Isso é algo impensável hoje em dia, em que todas as pessoas querem ter o seu automóvel

J.-C.:
Talvez seja impensável hoje, mas é a evolução lógica, o que não significa o desaparecimento do automóvel. Os transportes públicos e privados vão continuar a ser complementares, pois não respondem à mesma necessidade. O urbanismo é limitado e estar sempre a renovar as infra-estruturas torna-se dispendioso. Os transportes públicos não podem transportar todos os utentes ao mesmo tempo, nem a rede viária pode receber todos os automobilistas simultaneamente.

CONT.: Mas haverá um futuro para o automóvel nos centros urbanos?

J.-C.:
Eu acredito que sim, porque o automóvel é e continuará a ser um dos pulmões económicos das cidades.

Mas se os carros desaparecerem dos centros urbanos, é preciso reinventar a actividade económica: o trabalho, os comércios e até a habitação. Agora o que é necessário é que o automóvel polua cada vez menos.

Um dos outros desafios que se coloca aos construtores é proporem soluções para reduzir a ligação do carro ao solo…

CONT.: Isso quer dizer exactamente o quê?...

J.-C.:
Quer dizer que teremos que optar por reduzir o lugar que o carro ocupa na cidade, tanto no tempo como no espaço.

Temos que reduzir o "tempo" do automóvel quando se desloca na cidade, através de mais car-sharing (partilha de carro), o que conduzirá a menos veículos individuais nos centros urbanos.

E quando o carro está parado tem que ocupar menos espaço. Podemos conseguir isto através de automóveis mais pequenos ou "micro-carros", o que permitirá utilizar estacionamentos mais pequenos dentro das cidades ou criar mais lugares de estacionamento.

CARROS A ENERGIA FÓSSIL
AINDA DURANTE BASTANTE TEMPO



CONT.: Depois dos carros híbridos desaparecerem, digamos entro de 20 ou 30 anos, qual será o combustível ao qual o automóvel vai recorrer? Gás, energia solar, motores a água? É possível imaginar um transporte privado que funcione sem um combustível fóssil?

J.-C.:
O medo de todos os actores da indústria automóvel é a penúria de petróleo anunciada há muito. Terá lugar? Ninguém sabe dizer.

Em contrapartida, o petróleo é um carburante que se tornará cada vez mais caro, o que permitirá à indústria petrolífera fazer furos mais dispendiosos para ir procurar o petróleo a profundidades maiores, o que vai retardar durante mais alguns anos a penúria.

De um ponto de visto técnico, o petróleo é um produto notável, apesar de ter "má fama". Não existe actualmente um equivalente ao petróleo, que ofereça uma tal quantidade de energia num volume e massa tão pequenos, sendo ao mesmo tempo de fácil acesso em todo o planeta, por um preço tão baixo, mesmo quando estamos a falar de 1,50 euros por litro.

CONT.: Mas e quando deixar efectivamente de haver petróleo?

J.-C.:
A Idade da Pedra não acabou pela falta de pedras (risos). Para a "Idade do Petróleo" vai ser a mesma coisa.

Outras energias, certamente sintéticas, vão aparecer e substituir o petróleo, como o bronze substituiu a pedra. Mesmo que essas novas energias sejam caras, poderão tornar-se economicamente interessantes um dia, face ao petróleo que se terá tornado fora de preço.

A minha convicção é que os carros vão continuar a utilizar, ainda durante bastante tempo, energia fóssil. Mas deverão passar a consumir drasticamente menos do que hoje. Os carros vão ter que apetrechar-se dos mais diversos dispositivos para utilizar ao máximo cada gota do depósito: recuperação da energia dos travões, climatização activada com os travões, motor eléctrico para temporizar aceleramentos e abrandamentos, super-isolamento do habitáculo para reduzir as perdas de energia e as necessidades em aquecimento e ar condicionado, infra-estruturas inteligentes para tornar o tráfego mais fluído, etc.

CONT.: E os carros híbridos e eléctricos?

J.-C.:
O automóvel híbrido também vai ainda durar bastante tempo, além desse horizonte de 2040, porque ao recorrer a duas fontes de energia, maximiza o consumo.

Quanto ao carro eléctrico é, a meu ver, um beco sem saída, pelo menos, de momento. É uma tecnologia em perpétua evolução, mas que não consegue traduzir-se numa utilização significativa por parte dos clientes, ainda hoje não chega aos 20 % das partes de mercado.

Apesar disso, o carro eléctrico conseguiu um bom lugar em algumas actividades como a indústria, a marinha, os campos de golfe. É preciso, no entanto, continuar a trabalhar este dossier. Talvez um dia encontremos uma solução elegante para o problema das baterias dos carros eléctricos, tanto do ponto de vista do custo, como da longevidade e da autonomia.

Não é preciso esperar 50 anos, a redução do consumo de energia num automóvel já será espectacular se conseguirmos baixar 20 % nos próximos anos. Podemos até começar já, mas para isso é necessário alterar a nossa forma de conduzir, a nossa relação com o tempo, a potência e a velocidade de um veículo.

"O AUTOMÓVEL É UM BEM 
QUE CHEGOU A MATURAçÃO"


CONT.: Quais as prioridades que um designer deve ter em conta actualmente para imaginar o automóvel do futuro: aerodinamismo, consumo, segurança?

J.-C.:
O automóvel é certamente um dos produtos mais complexos de conceber. Este tem que arrancar qualquer que seja a meteorologia, faça -50°C ou +50°C, tem que aquecer o condutor e os passageiros quando está frio lá fora, transportá-los em toda a segurança, no maior conforto possível e com o menor ruído possível, entre muitas outras exigências. Tudo isto respeitando normas draconianas, durar 20 anos e conseguir chegar, pelo menos, aos 300 mil quilómetros. E tem que poder ser conduzido por qualquer pessoa.

O automóvel é o único bem no mundo que tem o dever de convencer todos os clientes, homens ou mulheres, dos 7 aos 77 anos, em todos os países e culturas.

Assim sendo, tudo é prioritário e para quem desenha e concebe um automóvel – do designer ao construtor – o objectivo é alcançar o melhor compromisso num veículo o mais homogéneo possível.

O carro é um bem que chegou a maturação e que não vai conhecer grandes alterações no futuro, como o que podemos ver, por exemplo, com os telemóveis nos últimos anos.

CONT.: Já chegou a desenhar e a conceber modelos que sabe de antemão que não poderão ser comercializados ou que não passarão do estirador?

J.-C.:
Esse exercício é frequente e salutar, e é o que dá origem aos concept-cars . Os concept-cars são conceitos imaginados em toda a sua “pureza”, com o mínimo de constrangimentos. Tanto, que em alguns concept-cars , um condutor tem dificuldades para se sentar, de tão baixos que são. É quase uma escultura, mais do que um automóvel.

Mas os “concept-cars” são importantes para estimular a criatividade dos designers , nos deixar ultrapassar os nossos limites, os limites técnicos e os constrangimentos, e vão permitir-nos fazer progressos em alguns domínios em que não avançávamos.

CONT.: Justamente, quais são os limites que lhe são impostos quando concebe um novo modelo?

J.-C.:
A primeira e maior limitação é económica. É necessário fazer modelos rentáveis.

O mercado é tão concorrencial que qualquer grande construtor arrisca-se a falir se um ou dois modelos seguidos não registarem lucro. Essa margem é algo que se perde ou ganha, às vezes devido a pequenas coisas.

CONT.: Um dos futuros possíveis para o automóvel é o “carro por encomenda”...

J.-C.:
Bem, o carro por encomenda já existe, pois o cliente pode escolher o seu modelo numa gama que oferece mais de vinte veículos por construtor. Depois pode personalizá-lo com opções, cores, equipamentos, acessórios e mesmo interiores. Estamos bem longe do Ford T, em que o cliente podia escolher apenas a cor… desde que fosse preta (risos).

CONT.: Mas é economicamente viável responder pontualmente aos desejos do cliente?

J-C.:
É não só viável economicamente, como é mesmo indispensável comercialmente. E muitos outros equipamentos e opções vão continuar a aparecer para que o cliente possa diferenciar o seu automóvel do do vizinho.

CONT.: Quais são as exigências actuais dos compradores e como é que isso influencia o seu trabalho e a decisão de fabricar este modelo em vez daquele?

J.-P.:
A indústria automóvel é uma grande consumidora de inquéritos de opinião, testes de clientela e recorre frequentemente aos serviços do que chamamos “consultores futurólogos”. O direito ao erro não existe e o construtor tem que constantemente projectar-se no futuro e estudar um automóvel durante cinco anos, antes que este chegue ao mercado.

Depois de um modelo já estar no mercado, o carro tem que continuar a vender durante pelo menos mais uma década, antes de chegar ao mercado dos carros de segunda mão, onde vai ficar mais dez anos.

O timing para desenhar, conceber e comercializar um automóvel é fundamental, não pode ser muito cedo, nem muito tarde. A margem de manobra é estreita.

CONT.: Quer dizer que hoje já estão a pensar nas exigências que os clientes terão dentro de 10 anos?

J.-C.
: Claro, mas além das inovações técnicas e tecnológicas, essas exigências são sempre as mesmas. Basicamente todos os compradores de um novo automóvel querem o mesmo que eu e você, querem tudo em melhor: o melhor carro, o mais confortável, aquele que tem mais equipamentos pelo menor preço e o consumo mais baixo, ver nulo, se possível.

CONT.: Mas actualmente, há alguma tendência mais em voga?

J.-C.:
Actualmente, as exigências vão no sentido de uma maior conectividade no automóvel.

CONT.: Por falar nisso, ouvir rádio pela internet quando estamos a conduzir, ter um sonar que se projecta no pára-brisas para auxiliar a condução, um carro que estaciona sozinho, auto-estradas equipadas com sistemas que permitem ao condutor colocar o carro em auto-piloto, sky-cars ... Tudo isto ainda é ficção-científica ou uma realidade que podemos esperar para breve?

J.-C.:
Todos esses equipamentos já são existem e são até propostos em alguns modelos.

O sky-car já é comercializado nos Estados Unidos, basta ter a carta de piloto para pequenos aviões.

Quanto ao auto-piloto num automóvel e às auto-estradas inteligentes, a tecnologia está pronta, só falta mesmo é convencer o condutor, o que pode vir a acontecer nos anos 2030, quando a geração internet chegar ao poder.

Entrevista conduzida por José Luís Correia
in CONTACTO de 01/02/2012

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