quarta-feira, 6 de junho de 2012

Editorial - Boicotar ou não o Euro 2012?

Estou expectante mas confiante, como todo o bom português, quanto ao desempenho da nossa selecção no Euro 2012. Será desta?

Lamento apenas que o evento aconteça com o que se passa hoje na Ucrânia e que deveria ter merecido uma onda de protesto, pelo menos da parte das nações que vão enviar as suas selecções ou até mesmo das próprias selecções.

O Governo de François Hollande anunciou na semana passada que nenhum membro do executivo francês vai deslocar-se para ver os jogos da França na Ucrânia (os "Bleus" estão no grupo dos ucranianos), em sinal de protesto pela situação que vive a ex-primeira-ministra Iulia Timochenko. Já em Abril, Angela Merkel tinha anunciado o mesmo tipo de boicote.

A antiga chefe de Governo ucraniana está detida, acusada de "abuso de poder". Recentemente foi também "indiciada" como "testemunha" num caso de homicídio de um deputado. Só que a Procuradoria ucraniana já fez saber que está pronta a acusá-la também por esse crime, porque entende que ela está directamente envolvida, apesar de ainda nem sequer a ter ouvido como testemunha!!! O julgamento foi adiado para 26 de Junho, enquanto durar a hospitalização de Timochenko, internada devido às suas hérnias discais. Para protestar pela sua detenção, a opositora, de 51 anos, tinha já encetado uma greve de fome entre 20 de Abril e 9 de Maio, mas devido aos seus problemas de saúde teve de dar por terminada a greve e foi hospitalizada. Timochenko pediu para ser tratada num hospital na Alemanha, mas a Procuradoria ucraniana indeferiu o pedido. Timochenko recorreu agora ao Tribunal dos Direitos do Homem em Estrasburgo para julgar o seu caso: diz que na Ucrânia não há justiça e acusa o actual presidente ucraniano, Viktor Ianukovitch, de ter arquitectado esta vingança política com o objectivo de eliminar a única concorrente séria às eleições legislativas de 29 de Outubro próximo.

Recorde-se que Timochenko foi a "Joana d'Arc", como lhe chamaram os media ucranianos na altura, da "Revolução Laranja" em 2004. O protesto começou quando o povo contestou que as urnas tivessem mais uma vez ditado a vitória do candidato pró-Moscovo, Viktor Ianukovitch, em detrimento do candidato pró-europeu, Viktor Iushchenko. Depois de mais de meio milhão de ucranianos saírem à rua, a comissão de eleições convocou novo sufrágio e a vitória coube a Iushchenko e a Timochenko, o seu braço direito. Os dois tudo fizeram para se afastarem de Moscovo e alinharem ao lado da UE, tendo-se chegado a falar numa adesão.

Desde 2010, fala-se apenas em assinar um acordo de associação entre a UE e a Ucrânia, e as relações deterioram-se ainda mais entre Bruxelas e Kiev desde que Timochenko foi presa no final de 2011.

Uma das primeiras medidas que o presidente pró-Moscovo tomou, assim que foi eleito em 2010, foi retirar o pedido do seu país de adesão à NATO. Em troca, Putin baixou o preço do gás vendido à Ucrânia.

Perante a situação vivida por Timochenko, a França e a Alemanha decidiram participar desportivamente no Euro 2012, mas não politicamente. As medidas mereceram o apoio da Comissão Europeia, de Durão Barroso a Van Rompuy e Viviane Reding.

Estes boicotes ameaçam prejudicar mais do que apenas o Euro 2012, está em risco o possível acordo de associação, cuja assinatura está agendada para o Outono.

A não ser que seja essa a jogada do actual Governo ucraniano: armar-se em vítima, afastar-se da UE, e prestar assim vassalagem ao providencial e protector grande irmão russo.

Preocupa-me que os milhões envolvidos na organização do Euro 2012 na Ucrânia pesem mais do que os direitos humanos. É possível assistir aos jogos de Portugal na Ucrânia (e aos outros) e não querer saber que somos coniventes com uma ditadura subserviente a Putin, que é actualmente um dos exemplos de açambarcamento do poder nas mãos de um só homem?

A Europa tem várias ditaduras oligárquicas ad portas , mas não parece preocupar-se com isso, antes compactua alegremente com as mesmas. Os governos tão expeditos a enviar tropas de paz e de "democratização" para o Afeganistão e para o Iraque, fazem que não vêem casos flagrantes de violação dos direitos humanos em território ainda considerado europeu, em países como a Ucrânia, a Rússia, a Bielorússia ou o Azerbeijão (se considerarmos, como muitos geógrafos, que a Europa acaba no Cáucaso e nas margens ocidentais do mar Cáspio).

Foi particularmente infeliz ver como, há duas semanas, os 100 milhões de espectadores europeus vibraram em êxtase com o festival da Eurovisão e a glamorosa república do Azerbeijão se pôde mostrar travestida em jóia petroleira do Cáucaso, quando na realidade é um regime de terror que rege o país com uma mão de ferro desde que o clã de Ilham Aliev se agarrou ao poder em 1993, varreu do dicionário a palavra democracia e começou a perseguir jornalistas e opositores políticos.

E enquanto dentro do Palácio de Cristal novinho em folha os cantores de cada país europeu se sucediam, num simulacro de concórdia e união continental, lá fora, não muito longe do aparato festivaleiro, os opositores do regime, que queriam aproveitar a presença de estrangeiros para denunciar o verdadeiro Azerbeijão, eram espancados com matracas e bastões. E da parte dos comentadores de cada canal de televisão que lá estavam, incluindo o da RTP, nem uma única palavra sobre o que se passava nas ruas! Até que ponto é possível ser cúmplice?

Por essas e muitas outras razões boicotei o festival este ano. E o Euro 2012? Ainda não decidi.

José Luís Correia
 

Sem comentários:

Enviar um comentário