Hieróglifos
Os acontecimentos na cidade dos mil minaretes pontificam, desde há mais de uma semana, nos inúmeros serviços noticiosos, mas raro é o analista que se atreve a delinear uma entre várias prováveis origens ou uma entre várias possíveis evoluções, reduzindo-se à evidente correlação (pelo menos temporal) com a insurreição tunisina. Os analistas andam perdidos nos anais.
Terá a quase aceite evidência de que o filhote mais novo de Mubarak se prepara, com o apoio da finança internacional, a suceder ao pai e assegurar essa dinastia faraónica numa república multipartidária em estado de sítio desde há décadas, forçando eventuais pretendentes a inflamar as massas? Algo já velho de dez anos mas que ganha amplitude com o aproximar de eleições presidenciais, as quais, desde o golpe de 1952, são de candidato único, não obstante as promessas de reforma.
Ou será que a instabilidade no mundo árabe, do Mediterrâneo ao Golfo Pérsico, e mais além, cuja emergência é facilitada pela presença ou de autocracias e similares ou de religiosos intolerantes, com as consequentes rivalidades internas e o afadigar diplomático, cai que nem sopa no mel nos esforços do povo escolhido para aligeirar o cerco e a pressão, após o relativo esquecimento da ameaça iraniana?
Parece, pois, inútil resumir o que todos leram, ouviram e viram, tanto como é despropositado, ou extemporâneo, teorizar sobre bases incertas ou não comprovadas. Porém, o repentino abalo num país que nos habituaram a ver estável obriga a deixar elementos de reflexão.
Que aqueles que tradicionalmente se tomam por donos do mundo, polícias, julgadores e correctores de tudo o que nele se passa, não se levantem contra os perturbadores da ordem estabelecida, antes com eles façam coro contra um seu amigo e aliado – é suspeito. Que um gasoduto expluda e arda, em acto de sabotagem, mas não aquele que se liga a um determinado país vizinho (Israel) – é suspeito. Que as forças do Bem reclamem, de repente, eleições, sabendo que recentemente dois processos desses deram a vitória ao Mal e que é grande a probabilidade de tal se repetir – é suspeito. De resto, o atraso evidente, e a timidez, com que os fazedores de chuva e os fabricantes de guarda-chuvas mencionaram as virtudes dos valores democráticos, também isso é suspeito. Que os serviços secretos egípcios sejam os principais parceiros da Grande Agência em todo o espaço muçulmano (contrariamente ao suposto) e não tenham pressentido a avalancha e prevenido que o ressentimento popular se faça contra o líder, directamente, mas contra a situação económica em geral – é suspeito.
Todos estes "laissez-faire" são motivo de interrogação. Uns suspeitos de directores do circo, outros de bobos da corte.
O actual nome do Egipto (Misr) significa "a terra" ou "fortificação". Bem... é verdade que os hieróglifos são difíceis de ler, mas mais ainda de decifrar.
Carlos Roso
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