quarta-feira, 21 de março de 2012

Festival das Migrações: "A guerra nunca acaba"

Foto: M. Dias
Quase quarenta anos depois do fim da Guerra na Guiné, a história dos combatentes portugueses e guineenses ainda provoca emoções em quem lá esteve. A começar por José Manuel Saraiva, autor do documentário sobre a guerra exibido no Festival das Migrações e ex-combatente em Xitole, no sul da Guiné.

Há um sentimento palpável de emoção quando as luzes se acendem. Na sala do Festival das Migrações onde foi exibido o documentário "De Guileje a Gadamael – o corredor da morte", vêem-se muitos guineenses. São eles os primeiros a pedir o microfone para falar com o escritor, no debate organizado pela associação Os Amigos do 25 de Abril que se seguiu à projecção.

"Obrigado, muito obrigado por ter mostrado este documentário. É uma satisfação para todos os guineenses, para verem que não é uma invenção: foi mesmo uma obrigação ir à guerra", agradece um imigrante da Guiné no Luxemburgo.

José Manuel Saraiva, ex-jornalista a viver entre Portugal e o Luxemburgo, é o autor do documentário que a SIC exibiu em 1996, e que agora foi mostrado pela primeira vez perante uma audiência.

"Já não via este documentário há muitos anos", conta ao CONTACTO José Manuel Saraiva, que admite ter ficado emocionado com a recepção ao filme. "Havia muitos guineenses na sala... E o documentário é forte, é terrível".

Realizado para a SIC, o documentário retrata um dos episódios mais sangrentos da guerra colonial: a retirada das tropas portuguesas de Guileje para Gadamael, em 1973, debaixo dos ataques do PAIGC. Vinte anos depois, os combatentes do exército português e das tropas do PAIGC evocam em conjunto os acontecimentos dolorosos que os opuseram durante a guerra.

Uma viagem ao passado que o autor do documentário também foi obrigado a fazer, quando regressou à Guiné para filmar "O corredor da morte", em 1995. José Manuel Saraiva foi alferes em Xitole, no sul da Guiné, entre 1968 e 1970. Foi ferido, esteve no hospital militar, e viu morrer alguns companheiros, num cenário que classifica como "sinistro".

O escritor e Eduardo Dias, da associação Amigos do 25 de Abril
"Eu vivi os dois anos mais sinistros e horríveis da minha vida na Guiné, mas tenho um enorme afecto pelo povo guineense", diz José Manuel Saraiva.

"Já exorcizei muitos fantasmas, já não passo noites a pensar nisso, mas é evidente que é uma emoção...". Pausa. "Eu tinha 22 anos", continua. "Tínhamos todos 20 ou 22 anos, e de repente estávamos a ver gente a morrer ao nosso lado...".

No regresso à Guiné para filmar o documentário para a SIC, o segundo que fez sobre a guerra colonial, José Manuel Saraiva decide voltar a Xitole, a 80 quilómetros de Guileje. No antigo aquartelamento, encontra um cenário de desolação. Abrigos subterrâneos cobertos pelas ervas, o depósito de água destruído, tudo vencido pelo mato. Mas o memorial aos camaradas mortos em combate ainda lá está, e a emoção é mais forte do que ele.

"Quando entrei no aquartelamento, encontro o memorial aos cinco homens que morreram na minha unidade. Não foi destruído, porque na Guiné há muito respeito pelos mortos. Tive um ataque de choro terrível. E pensei: 'Oh Zé Manel, mas o que é que tu vieste fazer para aqui outra vez?'".

"Ninguém imagina o que é... Tive um capitão que dizia: 'A guerra não acaba nunca'", conclui o ex-combatente.

José Manuel Saraiva nasceu na aldeia de Santo António d'Alva, em 1946. Foi jornalista, tendo pertencido aos quadros de O Diário, Diário de Lisboa, Grande Reportagem e Expresso. É autor de dois documentários sobre a Guerra Colonial, produzidos pela SIC, um dos quais transmitido pelo canal Arte em França e na Alemanha. É sua também a história que deu origem ao telefilme "A Noiva", de Luís Galvão Teles.

Desde 2001, dedica-se inteiramente à escrita. Nesse ano publica a sua primeira obra, "As Lágrimas de Aquiles", inspirada em acontecimentos da guerra na Guiné, a que se segue o romance histórico "Rosa Brava", em 2005 – um best-seller que vendeu mais de 50 mil cópias e foi traduzido em Itália. Em 2008, publica "Aos Olhos de Deus" e em 2011 "A Terra Toda".

Casado com uma funcionária do Tribunal de Justiça da União Europeia, sediado no Luxemburgo, José Manuel Saraiva vive agora entre Portugal e o Grão-Ducado.

Actualmente, está a terminar o próximo livro, um romance histórico sobre a fuga da corte portuguesa para o Brasil.

Texto: Paula Telo Alves

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